quarta-feira, 24 de junho de 2009

Dois e cinquenta - Nona parte

Ela caminhava lentamente pelo corredor daquele ônibus. Era possível admirar, através de seu uniforme branco e velho, os desenhos formados pelos detalhes em renda de seu sutiã negro. Incrivelmente delicado; quase uma ninfa.


Caminhava com as pernas um pouco torcidas, assim como os olhos de Miguel.
 Era a timidez, que a deixava ainda mais encantadora.
 Chegou até Miguel e começou a falar tantas coisas, mas nada pôde ouvir. Naquele momento estava muito ocupado em reparar suas curvas, seus olhos e seus seios, enormes e roliços.
 
Aos poucos passou a compreender algumas palavras e quando deu por si estavam abraçados, deitados do chão frio com cheiro de moedas caídas. Ele, ela e seu sutiã negro de rendas (certo que perecia os de sua avó, mas nela tudo fica belo). 
Disse-lhe então ao pé do ouvido, com a voz um pouco trêmula e os olhos azuis escondidos por detrás das pálpebras:



-Você se contenta em me ver?


- A mim este Sol, estes prados, estas flores.

Contentam-me.

Mas, se acaso me descontentam,

O que quero é um sol mais sol 
que o Sol,

O que quero é prados mais prados 
que estes prados,

O que quero é flores mais flores 
que estas flores

- 
Tudo mais ideal do que é do mesmo modo e da mesma maneira!



E então ela beijou nosso japonês e fizeram amor durante horas e horas. Seu corpo sobre o dele, se uniam agora em um só. Sentia sua respiração, seu tremor, a batida de seu coração.

Tuntun, tuntun, tuntun.



Acordou.



Correu até o banheiro pra se banhar. Tomou seu café amargo ainda pensando no mar (ou lagoa, como já disse) azul.
 Correu para o ponto, já havia se entregado a vida de operário e pegava o ônibus religiosamente, todos os dias. Subiu envergonhado, como se a cobradora pudesse ver em seus olhos todo seu ardor masculino, então olhou fixamente pro chão.



-Tome seus dois e cinqüenta - disse em tom rude.



Ela admirou-se com tamanha rispidez e pegou o dinheiro, sem pronunciar uma só palavra.


Depois de meia dúzia de mordidas na mão (mania já citada anteriormente) resolveu olhar para sua musa, a cobradora. Virou-se decidido a convidá-la pra sair, foi quando ouviu sons saídos de sua boca para uma ruivinha sem graça e sem jeito sentada em sua frente.



Deja vu.

Ela roubara-lhe o sonho,



(e)

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Dois e cinquenta - Oitava parte

Era só mais um dia entre tantos, misturado num emaranhado de dias flutuantes que seguiam sem deixar explicação. Do lado de fora da janela, a segunda-feira começava a acordar, espreguiçando-se devagar, com a pressa de quem ainda tem a eternidade pela frente. Como de praxe, Cora veio visitar Rebecca nos sonhos. Diferente, desta vez, porém - não foram sonhos perturbadores da madrugada, que deixavam de lembrança dias atormentados e nuvens cinzentas; foi um sonho de manhã. Um sonho bom, matinal, que deixou um gosto muito mais característico na boca pelo dia afora: um gosto azul-bebê, uma cor tão Cora, tão doce, tão deliciosamente sinestésica. Se Rebecca soubesse o nome da cobradora, certamente haveria multiplicado as inúmeras associações que ligavam aqueles claros cabelos com o belo sonho. Naquele amanhecer, tudo era luz, tudo era um pingo de felicidade, que tomou conta, de repente, do mar revolto que eram os pensamentos da adolescente.



Tomou um café da manhã reforçado, como quase nunca fazia. Estava disposta, diferente. Estava de saída, mas chamou-lhe a atenção uma folha muito bonita entre os materiais escolares, em cima da escrivaninha no quarto. Era uma folha que ela nunca havia visto antes. Era o destino, que brincava com ela. A folha estava ali, a atiçar a menina, a colocá-la em prova. Uma lindíssima folha azul-bebê, surgida do nada, em cima da escrivaninha,naquele dia. Apanhou a atrevida folha, dobrou e a enfiou no bolso, sem cuidado.



- Mãe, tô indo, viu? Fica com Deus.

- Que sorriso é esse, viu o passarinho verde, foi? - a menina riu, sem graça - E, por um acaso o nome dele é Gabriel, é? - a mãe a abraçou, com ternura. Por um instante, Rebecca congelou. Sentindo o corpo rechonchudo da mãe a envolvendo, desfez o sorriso e deixou fugir uma parcela do encanto da manhã.

"Eu sou a prosopopéia do pecado, não há dúvida." - pensou. Ela nem lembrava-se do nome do garoto, na maioria dos dias. Esforçou-se ao máximo para recuperar o sorriso e mantê-lo intacto para responder "Claro, né, Dona Paula?", mas aquele sorriso não era nem um pouco dele. Um pecado que não podia conter. O sorriso tinha outro nome, um nome que ela nem sequer sabia qual era. Mas tirando este detalhe, sabia de cor todos os outros que pôde decorar com os olhos. Um pecado incontrolável.



Saiu de casa tentando afastar a cruel escuridão da dúvida e fazer-se luz, por só mais um momento. Eram raros os momentos em que fosse luz. Desde o fatídico dia em que acordara mais cedo e encontrara Cora, então, menos. Tornava-se cada vez mais desbotada. Corrompida por um desejo proibido que a consumia. Por vezes, ela até queria ser luz outra vez, mas quase sempre gostava daquela escuridão, de ter se tornado pecadora e quieta. Esconder de si mesma não adiantava mais, ela queria de verdade ser aquilo, ter aquilo. E ela sabia, no fundo, sempre soube. No meio das trevas que criara para se esconder do mundo, havia encontrado um pedaço da sua paz, ainda que apenas em pensamento.



No ônibus, não evitou olhar a moça aquele dia. Ela estava tão bonita quanto em seu sonho. Em todos os detalhes. A pele branca que saia do uniforme, displicente; os cabelos mal presos, loiros, bagunçados com o vento da janela aberta; os olhos, ah, os olhos; as pernas cruzadas e... tudo. Tudo nela era tão encantador quanto o que todos sabiam reparar. Rebecca ia além, reparava em cadadetalhe e ficava tonta, só de olhar. Era muito para os olhos, e não só para os olhos porque aquela imagem a invadia através dos olhos e alcançava a alma, com toda a força. Agarrava-se nas entranhas e permanecia.



Talvez porque a estivesse encarando com olhares famintos, mas Cora a olhou de volta. Todos os olhares daquele azul não eram passíveis de interpretações lógicas. Era isso o que os deixavam mais interessantes? Mais loucos? Era isso o que a enlouquecia? Ah, certamente que era. Quando achou que não caberia mais falta de discernimento em seu ser, Cora dirigiu-lhe a palavra:



- Mas, se acaso me descontentam,

o que quero é um sol mais sol que o Sol,

o que quero é prados mais prados que estes prados,

o que quero é flores mais estas flores que estas flores. Pode passar.



Sentiu-se desmoronar. Não agiu. Não passou a catraca. Em vez disso, desviou o olhar: APROXIME O CARTÃO. Passado o choque inicial, finalmente ela pôde obedecer a frase. Aproximou seu cartão escolar, passou e sentou-se no lugar exatamente em frente à cobradora. Apoiou os pés na cadeira dela. As duas cruzaram o olhar por um segundo meio eterno, sem nem conseguir pensar em nada, debaixo dos cabelos vermelhos encontraram-se todas as declarações de amor do mundo naquele instante. Até que Rebecca abriu a bolsa, pegou uma caneta, tirou um papel amassado do bolso do jeans e rabiscou uma frase.



Ficou ali, alternando olhares para a frase que escrevera e a mulher para quem escrevera a frase. Esperou chegar muito perto do ponto em que tinha que descer para se levantar. Colocou o papel dobrado e mais amassado ainda que antes em cima do caixa, esperou apenas o tempo necessário para que Cora encostasse em sua mão. Então, olhou com carinho para as mãos, encostadas, soltou o papel junto às notas e disse:



- Eu não sei o seu nome.



Deu o sinal e saiu, antes que ela pudesse responder,



(c)

domingo, 21 de junho de 2009

Dois e cinquenta - Sétima parte

cora, ao chegar em casa depois de um longo dia de reviravoltas em sua alma, queria apenas desmaiar. ainda assim, preparou o jantar e ouviu seu pai reclamar do parco salário que eles ganhavam. todos os dias ele reclamava, e dizia que não acreditava ter sua filha no mesmo patamar social que ele tentou fugir por toda sua vida. eles deveriam pensar em enriquecer, em mudar de vida, pois aquilo era uma desgraça.


- mas foi você que me arranjou o emprego. e foi aí que eu desisti de estudar.

- e eu sempre te disse que estudar não é o caminho certo, cora.


já não discutia. a sua contestação ficara perdida nas noites que passou chorando o futuro que haviam lhe desenhado. já não esperava nada, apenas esperava esperar suas paixões ultrapassarem catracas e adentrarem em seu mundo adornado. e suas paixões impulsionavam sua alma confusa e estrábica, um pouco torta e sem cor, mas sabia que tudo se explicava por todos os sorrisos, por todos os olhares. e aqueles olhares que estremeciam seu coração, acaloravam seu dia deixavam-na insana por dentro. e não era apenas aquele homem de olhos orientais, que muito a assustava, com toda sua pompa a destrambelhar pelo transporte público. era, também, aquela menina, que suscitava tais lembranças apimentadas, que queimavam sua garganta, enquanto a deliciavam. 
lavava calmamente a louça do jantar, brincava com a espuma pelos pratos sujos, lembrava-se das cócegas na sua pele. sentia a água gelada que desabrochava da pia, e a espirrava fazendo-se rir sozinha. que besteira, cora, você está se metendo em confusão. sim, estava, mas já não tinha tanta preocupação. queria percorrer caminhos nunca dantes vistos, escorregar por mundos que a fizessem sentir um pouco mais diferente. que a fizessem um pouco mais feliz, completa, irrigada. queria viver o que as linhas sonhadoras de seus poemas lhe sussurravam todos os dias, e já não achava erro ter direito à sentir isso. não era privilégio de ninguém, era apenas de quem se aventurasse. não sabia quem é que se encaixaria perfeitamente com sua alma cheia de vontades, mas não ligava. simplesmente lhe apetecia a idéia de ter entre os dedos cabelos vermelhos e dentro dos olhos outros mais puxados. era, sim, absurda, hiperbólica, colérica. queria tanto gritar, para afastar todos os pensamentos mesquinhos que insistiam em puxá-la para baixo e recuar pelos caminhos: ¹pouco me importa/ pouco me importa o que? não sei: pouco me importa.


fez silêncio para ver se dento de si mesma resurgiam as vozes desanimadas, como patos soluçando, mas parecia que tinham desistido. ouviu os roncos distantes do seu pai. caminhou na ponta do pé, pegou seu velho livro de alberto caeiro e sorriu.




no dia seguinte, quando viu aquele emaranhado vermelho-morto se aproximar, e tais olhos pretos que já a observam, disse-lhe na ponta da língua:


- ²mas, se acaso me descontentam,

o que quero é um sol mais sol que o Sol,

o que quero é prados mais prados que estes prados,

o que quero é flores mais estas flores que estas flores. pode passar.


cora decidira-se por viver, pois sonhar não cabia mais na sua alma, que tinha se tornado grande, tão grande que nem ela imaginava,






¹ pouco me importa - alberto caeiro.
² ah! querem uma luz - alberto caeiro

(m)

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Dois e cinquenta - Sexta parte

Com o carro ainda na oficina Miguel levantou decidido em pegar o ônibus, aquele inundado pelo mar azul. No fundo sabia que existiam outras formas para se locomover, como o táxi, que dessa vez poderia aceitar parar ao ver o novo brilho que mora em seu olho pequenino de japonês. Mas não. Ele não quer e mesmo assim insiste em afirmar pro seu coração que só vai até aquele ponto de ônibus por economia ou para experimentar algo novo. Pobre coitado, não percebe que o que o atrai até aquele ponto de ônibus são sim aqueles olhos escondidos por detrás da catraca. Tão diferentes do seu; tão expressivos. Tão infantis. Sim, por que da última vez notara que pareciam de uma criança - a cobradora parecia alguns tantos anos mais nova que nosso japonêsbrasileiroportuguês. Mas isso pouco importava naquele momento.



Subiu as escadas como quem sobe uma montanha, com muito cuidado dessa vez para que não chama-se atenção pelo seu destrambelhamento, como da última vez. Com o dinheiro contado (dessa vez em nota e moeda, como que para esbanjar dinheiro) entregou para a cobradora, esperando por um sorriso. Em vão. Ela também parecia esperar por algo, mas se intimidou ao vê-lo tão chique em seu terno e recuou tapando os grandes dentes com os lábios vermelhos.



Sentou-se, novamente em cadeira única, pegou um maço de papéis querendo se esconder e fingiu lê-los. Mas seu pensamento permanecia na sua menina azul.



Escondido entre o estofado e o vidro segurou firme um de seus pulsos e pôs a mão fechada dentra da boca, mordendo fortemente. Tomara isso como mania ainda criança. Quando seu pai morrera se lembra de sua mãe batendo em sua mão fazendo com que ele parasse. As pessoas não entendiam que esse era seu choro, seu grito, seu desespero.



Depois de deixar algumas marcas dentárias retirou a mão,aliviado.



De repente surge diante seus olhos, que evitarei caracterizar aqui de novo sabendo que já podem imaginar sua principal característica, aquelas duas lagoinhas azuis (ora mar,ora lagoa). Trocou algumas palavras; não pôde decorá-las bem. Estava muito ocupado em manter sua pose de dono de grife em shopping. E jamais poderia se deixar levar por aquele sentimento, afinal, ela era bem mais nova e uma funcionária, operária como outra qualquer. Mais um número no centro.



Mas Miguel não podia evitar tudo e nem tudo sumia junto à mordida de sua mão. Ela gostava de poesia e isso o fascinava. Não conhecia muito bem, mas se lembrava de algumas do Pessoa. Justo o que ela citou,

(e)

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Dois e cinquenta - Quinta parte

Dormiu muito mal, amassou os lençóis, revirou-se na cama a noite toda. Quando cochilava, via cenas terríveis daquele homem dos cabelos negros e escorridos invadindo a boca de Cora com a língua e a escorregando com malícia masculina por toda a extensão corpo branco da moça.



Quando se levantou, Rebecca estava decidida a se atrasar. Sentia uma raiva imensa, não precisava pegar aquele ônibus inútil. Ignorava o frio na barriga que sentia. Repetia inúmeras vezes em voz baixa que não haviam razões pra sofrer com isso com a finalidade de se convencer. Encarou seu próprio rosto no espelho sem gosto. Penteou os cabelos mal pintados e observou as olheiras profundas. Desejava ser um pouco mais céu e um pouco menos inferno, pra estar num meio termo. Mas era toda inferno. Dentro de seus próprios olhos enxergava o inferno que havia, um inferno de desejo puro e reprimido. Hoje, mais que o ardor do desejo, a queimava o fogo da raiva. Fosse quem fosse, nenhum homem desejaria a cobradora mais que ela. Nenhum!



Vestiu-se com uma roupa qualquer e saiu. Não se atrasou. Tentou diminuir a velocidade dos passos para perder o ônibus, mas ela não pôde. Precisava ver a cobradora e seus cabelos claros. Quando o avistou no fim da rua, seu coração deu um salto maior do que o de costume. Deu o sinal, sentindo-se derrotada e fraca. Subiu e foi logo passar da catraca para acabar com o sofrimento de vez. Olhando para baixo, pôs a mão no bolso para pegar o passe escolar. Não estava. Na bolsa, não estava. Não estava em lugar nenhum, aquela merda. Procurava freneticamente.



- Perdeu o passe?



Rebecca respondeu que sim, sem desviar os olhos da bolsa.



- Hey... Hey! Tudo bem... - Não parava de revirar os pertences de dentro da bolsa.
- Tudo bem! - Cora esticou o braço e a tocou. Tocou o ombro de Rebecca com aquela mão pequena, onde cabia tanto delírio. A menina ficou paralisada por alguns instantes e levantou a cabeça vagarosamente para encarar a mulher. Nunca a havia visto de tão perto. Sentiu o corpo esquentar, ruborizar a face, queria explodir. Segurou-se com toda a força que tinha para não se jogar em cima dela e beijá-la ali mesmo. Como desejou tê-la naquele momento, despi-la e possuí-la, ali mesmo, naquele banco encardido. Sentiu ânsia de si mesma, estonteantemente misturada à intensa vontade de enlouquecer.



- Pode passar - sorriu com um sorriso diferente que Rebecca não soube interpretar. Não era um sorriso daqueles simpáticos de sempre, isso não era. Colocou a mão sobre a de Cora e a tirou de seu ombro, embaraçosamente excitada. Passou de uma vez e sentou-se um pouco mais longe nesse dia.



Não colocou o mp3, não observou o mundo do lado de fora. Tampouco observou Cora e seu comportamento formal com os homens e mulheres sujas do transporte público. Gravou na mente aquele sorriso e tentou decifrá-lo o dia todo.



Toda vez que pensava no assunto, junto à ânsia, uniam-se sensações das mais diversas, as pernas ficavam bambas e ela precisava fechar os olhos um pouco, pra passar,

(c)

Dois e cinquenta - Quarta parte

cora observou com seus olhos inquisidores, um mar revolto de sensações inexprimíveis, o homem sentar-se desajeitado, sozinho. gostaria de que pudessem lhe escrever um poema deste sentimento que parecia só ter despertado em seu peito. lembrou-se de romeu e julieta, aquele filme tão bonito que passou na televisão. se tudo assim fosse tão bonito, não iria complicar o fato dela ser uma trabalhadora, operária, servidora, cobradora. de ela parecer tão feia e mesquinha dentro de seu uniforme sem graça, de ter cheiro de pobre. tudo seria tão somente poesia. e poesia não escolhe cor, nem credo, nem classe. não, senhor. abaixou os olhos, sentindo-se pequena demais. sentiu vergonha de ter sentido tal coisa tão nobre que não pertencia aos direitos da sua alma pequenina.



logo á frente dele, havia uma menina, sempre aquela mesma menina, que parecia ter um olhar tão revolto quanto fora o seu, minutos atrás. o cabelo dela tinha uma cor alucinante, ah sim, sabia que aquilo seria alucinante, aquele vermelho que não era vivo, mas apenas brincava de morto. como se inventando a morte nos fios de cabelo, poderia se passar como despercebida, silenciosa, acolorida. e como uma cobra, dar o bote que ninguém esperava.



aquela perseguição do olhar da menina de cabelo de fogo morto, todos os dias, que deveria ser só de estudante mal-humorada, fazia-a lembrar da sua prima. odiava-a por ter que resgatar aquelas lembranças. era negra e tinha caracóis no alto do cabeça, e olhos castanhos envoltos de ternura. ia muito lá, quando mais nova, e a prima, mais velha, brincava de ser cabelereira. o toque dos seus dedos, leves e levianos, pelo seus cabelos, percorriam sua nuca e brincavam com a orelha pequenina. depois, iam tomar banho juntas, embora já tivesse idade suficiente para se cuidar sozinha, a menina gostava de ensaboá-la. a sua mão percorria lentamente a barriga lisa, dava voltas infinitas no peito pequeno, que ainda se despontava. descia da nuca até os calcanhares tão carinhosamente que parecia tocar uma harpa. dedilhava as pernas, deixando seu rastro de espuma, sempre de olhos fechados e a boca, uma linha torta e esprimida. depois de a secar, parte a parte, colocava um vestido nela e iam dormir. a menina a abraçava na cama de solteiro, e até hoje podia se lembar do seu cheiro de sabonete de erva doce. fazia-lhe carícias bobas e maternais até que alguém ia buscá-la. cora sentia vergonha, e agora, mesmo sentada no ônibus, tinha vontade de chorar, pois seus pelos eriçavam-se e se sentia toda quente. quando chegava em casa, tinha ânsias sem fim, culpada sem saber o crime, chorava baixinho, mas nunca se privava de ir visitá-la. o fim da história que se desenrolava em um colapso, foi quando sua prima tocara os lábios dela nos seus, a lambeu e disse que a amava, e que queria muito que ali ficasse para sempre, do lado, dentro, parte do seu corpo moreno. lembrava como se fosse ontem, seu desespero por sentir êxtase, a culpa que se inflamava por todos os poros, as lágrimas quentes que escorriam por seu rosto; e as mãos da mulher que percorriam todo seu corpo, a voz doce que lhe jurava um amor eterno e livre. depois disso, disse ao pai, pois naquela época sua mãe já morrera, que nunca mais queria voltar na casa de sua prima, que prefereria ficar sozinha. e agora, com os olhos prestes a se derramar, olhou com desgosto a menina, e queria que ela desviasse aquele olhar, aquele olhar de desejo íntimo, e que a transtornava tanto mais que mil homens velhos que a queriam descarademente.



suspirou ao ver que ela descia no seu ponto. o rapaz que a tinha deixado toda gelada e petrificada, ainda olhava para fora, ou não olhava, parecia querer inexistir naquele ambiente. sabia que ele nunca mais voltaria para aquele ônibus. sabia que ele odiaria toda aquela corja de gente junta, se espremendo, fungando, correndo, morrendo. e como ele não a olhava, por nada deste mundo, e como se sentia enojada e terrivelmente minúscula por não ter despertado nem desejo carnal nele, resolvera que lhe falaria. não sabia o quê, mas falaria. precisava lhe falar, seu coração corria atropelado, e já sentia as mãos suando, e via minguando alguma possibilidade de despertar nele, o que nela ocorreu. esperou o ônibus brecar, parar, e se levantou sem passos tímidos.


- é o ponto final, moço.


ele simplesmente a olhou. continuou na sua frente.


- shopping?

- é. osenhorgostadepoesia?

- oi?

- poesia. eu adoro poesia.


ouviu sua risada sem entender.

- não, eu matava aula de literatura. você gosta mesmo?

- eu gosto. muito. - e acrescentou, pois parecia vaga e boba - gosto de alberto caiero. e fernando pessoa. e de vi...

- são a mesma pessoa.

- como?

- isso eu lembro; o fernando pessoa se fingia desse outro, e mais três até.


cora sentiu-se deslocada. nunca deveria ter ido lhe falar, falar ainda desta coisa boba, que é esse gostar sem motivo de ler poesia, e ainda ter de aguentar tal superioridade, só por estar enfiada naquele uniforme.


- eles são bem diferentes, senhor.

- devem ser. os escritores são pessoas meio malucas... menina.

- flora. meu nome é flora, senhor,

(m)

sábado, 6 de junho de 2009

Dois e cinquenta - Terceira parte

Apesar de pequenos e exprimidos, os olhos de Miguel sabiam expressar bem sua crise existencial. Como pode um brasileiro, de olhos exprimidos japoneses e nome português? Bom, mas isto talvez fosse essencial para definir sua personalidade, um tanto quanto complexa e bagunçada. Nascera fruto do amor, mas desde tal acontecimento nunca mais o vira. Não a este sentimento. Vira outros, como a dor ou a saudade. Mas o amor não, este nunca mais lhe aparecera. E foi junto de um destes outros sentimentos, o que mais havia lhe acompanhado pela imensa estrada da vida, a raiva, que entrou naquele ônibus. 




O dia, cinza, lhe pregara uma peça. O carro, estragado. Os taxis, pareciam escapar-lhe aos olhos exprimidos. Então, balançando o braço, parou aquela caixa velha repleta de pessoas (ou seriam animais?). Entrou, olhou ao redor um tanto quanto enojado e disse em um tom de desdenho, mas, ainda assim, embaraçado:




- Moça... Por favor, q-quanto é a passagem?


- Dois e cinquenta.




Com a mão no bolso retirou algumas moedas, que tão logo se espalharam no chão. O desacostume fez com que ele não se agüentasse em uma freada, e acabou caindo e batendo com o quadril na catraca. Para qualquer um isso seria motivo para aumentar a raiva, ainda mais pra ele, um japonês-brasileiro-português. Mas não desta vez.



Aquela brecada havia lhe proporcionado um momento tão mágico que não havia como aumentar sua raiva. Os olhos que evitara desde que entrou na caixeta de transporte humano estavam agora na sua frente, quase que penetrados em sua alma.



Azuis, imensamente azuis. Pareciam o céu. Mas não o céu cinza daquele dia, e de todos os outros de sua vida. Azul como no dia que nascera. 

Os poucos segundos pareceram uma eternidade, mas rapidamente se recompôs, arrumou seu terno que encontrava-se desalinhado, retirou novas moedas como quem não precisa de dinehiro e atravessou a catraca. Sem dizer uma só palavra.



Sentou-se em cadeira única, afinal, jamais aceitaria dividir poltrona com um trabalhador qualquer.

 Porém, tomou o cuidado de escolhar uma bem perto da cobradora e seus tons de azul. Abriu sua maleta (preta,é claro), retirou um maço de papéis e pôs-se a lê-los. 

Ligeiramente distante estavam os olhos que um diz talvez lhe mostrasse novamente o sentimento perdido, pensou ele receoso, 

mas rapidamente espremeu estes pensamentos, deixando-os assim como seus olhos, e seguiu pelos minutos que o direcionavam ao ponto de chegada calado. Absurdamente sólido. Até que o ônibus parou, ele não se moveu, não sabia onde estava. O mar azul moveu seus lábios direcionando as palavras na sua direção. Ele tentou se soltar, mas permaneceu apático. A conversa rápida, a seu ver, teve um gosto de pedra. Foi grosso, respondeu pouco, disse pouco.

Evitou aqueles olhos por todo o tempo, temendo estar neles a resposta que ele temia. Já havia se acustumado a ser assim e não queria quebrar sua perfeição em um mar azul,

(e)

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Dois e cinquenta - Segunda parte

Todos os dias, Rebecca acordava meia hora mais cedo do que o necessário para pegar exatamente aquele ônibus. Ao chegar à escola, escolhia o lugar que lhe dava na telha e esperava meia hora até o momento de seus amigos chegarem. E seu namorado. Mas aquela meia hora era completamente compensada pela meia hora que ela passava dentro do ônibus, sentada, vagando pela cidade. A cidade em si, não lhe despertava o interesse. O que o despertava encontrava-se sentada lindamente atrás de uma catraca suja, em um banco mal almofadado, com um uniforme ridículo.

Os olhos da cobradora eram de um azul tão azul que Rebecca queria mais. Sentava-se com os velhinhos, na frente, até o ônibus esvaziar, assim, ela podia passar ali devagar e olhar; agradecer; um dia ou outro, dizer uma piada sobre o tempo. Observava os olhos dela com vontade, eram o céu. Intocável, incrível e inatingível céu.



Muitas pessoas passavam por ali. Sempre. Muitas. Diferentes, iguais. Eram tantas pessoas que nem saberia dizer mais se eram diferentes ou iguais. E isso porque a menina só estava ali em uma volta, nem inteira. Praticamente todos os homens que passavam olhavam para a mulher sentada, bem no meio do ônibus, como se já não bastasse a atenção que atraía naturalmente. Eles a olhavam muito. Ela era sempre muito simpática, sempre linda, sempre sorridente. Carregava livros de poesia, e nenhuma mulher linda com livros de poesia caberia no meio daquela sujeira. Exceto ela, que cabia. Como caber era um mistério, mas cabia. Todos os dias. Como se estar completamente deslocada a deixasse ainda mais interessante. Como se estar fora do lugar a colocasse no lugar certo.



A ruiva nunca pronunciou uma palavra para ninguém sobre a moça dos olhos de céu. Nunca. Ela não sentia nada, não era nada, não podia ser. Mas ela escondia, de tudo e de todos. E sentia coisas. Sentia coisas que escondia dela mesma, fingindo não sentir.



Ria-se com todos os moços interessantes que ela dispensava, sem nem saber. A cobradora nem notava o quanto eles a secavam, o quanto eles, nojentos, a comiam com os olhos. Nem notava, também, o quanto a menina a comia, nojenta, tanto mais.



Mas um belo dia de inverno, houve um homem que brotou ali, do nada. Deslocado: adjetivo que se encaixava. Naquele dia, em especial, a ida de ônibus não foi tão divertida. A mulher o observou com seus pequenos céus aprisionados na retina desde o momento em que ele entrou. E mesmo com as primeiras palavras que ele atirou nela, sem cuidado, sem pretensão, Rebecca soube. Dessas coisas de interesses inversos no amor, ela sabia bem.



- Dois e cinquenta.



Nunca ouvira palavras tão ácidas, o modo com que foram ditas foi tão especial, que ela só pode desejar que fossem suas, mas não eram. Sentiu-as descendo de atravessado pela garganta, com esforço, as engoliu. Aumentou no último o som do mp3 e desviou o olhar para a janela, para fora da janela, para algum lugar longe, longe, longe. Onde nem ela mesma poderia se encontrar. Afinal, não sentia coisa alguma. Ela tinha certeza que não sentia.



Naquele dia, o namorado de Rebecca estava especialmente carinhoso. Chegou dizendo Bequinha e a beijou, com amor. Ela, sem vontade, não o beijou muito, nem falou muito. Passou o dia sem falar muito. Ninguém nunca entendeu realmente o que foi que Gabs viu naquela estranha, excêntrica, geek, poser, tosca, vaca. As meninas que suspiravam quando Gabriel passava e anotavam o nome dele nas folhas do fichário com coraçõezinhos certamente usariam palavras bem piores do que estas para descrevê-la. Mas ela entendia, ham, sabia bem dessas coisas de interesses inversos.



Pelo menos um terço das meninas do colégio, sozinhas, no quarto, antes de dormir, pensavam em Gabs. Já Rebecca, 



(c)

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Dois e cinquenta - Primeira parte

cora não gostava de seu nome. achava-o curto, e nem um pouco poético. poderiam ter lhe dado isabela, e se transtornaria a cada soneto que visse a palavra bela. mas que se sua mãe insistisse em cora, que fosse coralina, para assim, ter de rimar com alucina. não sabia exatamente o que era alucina, mas a força das palavras lhe acertava em cheio, mais como brisa, e não propriamante como rocha, lógica e inquebrável.


mas apesar de achar feiura em seu nome, compensava em beleza sua aparência. ainda parecia muito menina, e dava-se a impressão que nunca as rugas pudessem ondular aquela pele lisa e alva que se alinhava sobre o molde da sua face. era branca, muito branca, e tinha os cabelos cortados até o ombro, e tinha olhos azuis, muito dos azuis, como o céu que passeava o dia todo pelas janelas que se debruçava, a sonhar. e era tanto céu azul que corria lá fora, enquanto trabalhava, sol a sol, que já nem ligava para o azul que enchia o mundo. odiava seu uniforme, que parecia que a deixava mais pequena do que já era, odiava o tintilar das moedas que as pessoas derrubavam ao passar pela catraca. porque, sim, cora, com seu semblante de menina aristocrática, era parte deste mundo desajustado, a parte mais imunda sobre rodas, sentada sobre seu trono sem mérito, era apenas uma cobradora.


seguia os passos do pai, motorista de outra linha, mas ainda suspirava pelos cantos quando sonhava que poderia muito bem dar a sua vida noutro lugar. enquanto isso, entre subidas e descidas, acostumadas com as curvas e as guinadas inesperadas, gostava de pensar nas palavras, de formar rimas, intercalá-las. começou esse gosto edruxulo, coisa de quem não tem mais o que fazer - dizia o pai, contrariado, desde menina, nas aulas de literatura. sentira tamanho júbilo quando comprou o cd de versos recitados de fernando pessoa, que era capaz de recitar vários. agora, levava na bolsa, pequena edição de vinícius de moraes, que a embedava com seus cânticos de amor e afloravam em sua alma, a oportunidade - temida - de sonhar.


por essas e outras, neste dia, que pensava enraivecida no nome que coroava sua pessoa, cora corada, cora rosada, cora florada, tirou-a de seus devaneios pessoa jamais vista por aqueles terrenos ambulantes. era alto, e parecia um tanto desengonçado, também pudera! vira a marca escancarada nos seus tênis, os fones de ouvido caídos na camiseta clara, o olhar perdido e um pouco repugnante. sabia! o tempo sentada ali lhe permitia avaliar cada tipo que passava por aquela catraca barulhenta, sabia! não sabia pegar ônibus, ah, não sabia. concentrou-se no rapaz, toda empertigada na cadeira, um pouco ansiosa sem saber porquê. tinha os olhos puxados, olhos orientais, enlameados, pretos e porosos! disseram-lhe uma vez que os orientais gostam de ouvir, sim, eram assim criados, e nós aqui, brasileiros estúpidos, queremos mais é falar. pensara, toda atrevida, o que me falta para dar cor nesta vida é bem um homem que me consiga escutar. em um segundo, já formulava histórias épicas inteiras, e o encanto só se desfez ao encontrar seus olhos com aquele olhar enviesado. sentiu-se sólida e toda gelada. todo o corpo dela estremeceu, como se tivesse levado uma pancada fria na nuca, que descera por toda as vértebras, uma a uma, transformando-a em um único bloco de gelo frio e mudo.


- moça... por favor, q-quanto é a passagem?


com dificuldade abriu a boca para fazer o som sair, mas até o som parecia congelado dentro da garganta,


(m)