segunda-feira, 22 de junho de 2009

Dois e cinquenta - Oitava parte

Era só mais um dia entre tantos, misturado num emaranhado de dias flutuantes que seguiam sem deixar explicação. Do lado de fora da janela, a segunda-feira começava a acordar, espreguiçando-se devagar, com a pressa de quem ainda tem a eternidade pela frente. Como de praxe, Cora veio visitar Rebecca nos sonhos. Diferente, desta vez, porém - não foram sonhos perturbadores da madrugada, que deixavam de lembrança dias atormentados e nuvens cinzentas; foi um sonho de manhã. Um sonho bom, matinal, que deixou um gosto muito mais característico na boca pelo dia afora: um gosto azul-bebê, uma cor tão Cora, tão doce, tão deliciosamente sinestésica. Se Rebecca soubesse o nome da cobradora, certamente haveria multiplicado as inúmeras associações que ligavam aqueles claros cabelos com o belo sonho. Naquele amanhecer, tudo era luz, tudo era um pingo de felicidade, que tomou conta, de repente, do mar revolto que eram os pensamentos da adolescente.



Tomou um café da manhã reforçado, como quase nunca fazia. Estava disposta, diferente. Estava de saída, mas chamou-lhe a atenção uma folha muito bonita entre os materiais escolares, em cima da escrivaninha no quarto. Era uma folha que ela nunca havia visto antes. Era o destino, que brincava com ela. A folha estava ali, a atiçar a menina, a colocá-la em prova. Uma lindíssima folha azul-bebê, surgida do nada, em cima da escrivaninha,naquele dia. Apanhou a atrevida folha, dobrou e a enfiou no bolso, sem cuidado.



- Mãe, tô indo, viu? Fica com Deus.

- Que sorriso é esse, viu o passarinho verde, foi? - a menina riu, sem graça - E, por um acaso o nome dele é Gabriel, é? - a mãe a abraçou, com ternura. Por um instante, Rebecca congelou. Sentindo o corpo rechonchudo da mãe a envolvendo, desfez o sorriso e deixou fugir uma parcela do encanto da manhã.

"Eu sou a prosopopéia do pecado, não há dúvida." - pensou. Ela nem lembrava-se do nome do garoto, na maioria dos dias. Esforçou-se ao máximo para recuperar o sorriso e mantê-lo intacto para responder "Claro, né, Dona Paula?", mas aquele sorriso não era nem um pouco dele. Um pecado que não podia conter. O sorriso tinha outro nome, um nome que ela nem sequer sabia qual era. Mas tirando este detalhe, sabia de cor todos os outros que pôde decorar com os olhos. Um pecado incontrolável.



Saiu de casa tentando afastar a cruel escuridão da dúvida e fazer-se luz, por só mais um momento. Eram raros os momentos em que fosse luz. Desde o fatídico dia em que acordara mais cedo e encontrara Cora, então, menos. Tornava-se cada vez mais desbotada. Corrompida por um desejo proibido que a consumia. Por vezes, ela até queria ser luz outra vez, mas quase sempre gostava daquela escuridão, de ter se tornado pecadora e quieta. Esconder de si mesma não adiantava mais, ela queria de verdade ser aquilo, ter aquilo. E ela sabia, no fundo, sempre soube. No meio das trevas que criara para se esconder do mundo, havia encontrado um pedaço da sua paz, ainda que apenas em pensamento.



No ônibus, não evitou olhar a moça aquele dia. Ela estava tão bonita quanto em seu sonho. Em todos os detalhes. A pele branca que saia do uniforme, displicente; os cabelos mal presos, loiros, bagunçados com o vento da janela aberta; os olhos, ah, os olhos; as pernas cruzadas e... tudo. Tudo nela era tão encantador quanto o que todos sabiam reparar. Rebecca ia além, reparava em cadadetalhe e ficava tonta, só de olhar. Era muito para os olhos, e não só para os olhos porque aquela imagem a invadia através dos olhos e alcançava a alma, com toda a força. Agarrava-se nas entranhas e permanecia.



Talvez porque a estivesse encarando com olhares famintos, mas Cora a olhou de volta. Todos os olhares daquele azul não eram passíveis de interpretações lógicas. Era isso o que os deixavam mais interessantes? Mais loucos? Era isso o que a enlouquecia? Ah, certamente que era. Quando achou que não caberia mais falta de discernimento em seu ser, Cora dirigiu-lhe a palavra:



- Mas, se acaso me descontentam,

o que quero é um sol mais sol que o Sol,

o que quero é prados mais prados que estes prados,

o que quero é flores mais estas flores que estas flores. Pode passar.



Sentiu-se desmoronar. Não agiu. Não passou a catraca. Em vez disso, desviou o olhar: APROXIME O CARTÃO. Passado o choque inicial, finalmente ela pôde obedecer a frase. Aproximou seu cartão escolar, passou e sentou-se no lugar exatamente em frente à cobradora. Apoiou os pés na cadeira dela. As duas cruzaram o olhar por um segundo meio eterno, sem nem conseguir pensar em nada, debaixo dos cabelos vermelhos encontraram-se todas as declarações de amor do mundo naquele instante. Até que Rebecca abriu a bolsa, pegou uma caneta, tirou um papel amassado do bolso do jeans e rabiscou uma frase.



Ficou ali, alternando olhares para a frase que escrevera e a mulher para quem escrevera a frase. Esperou chegar muito perto do ponto em que tinha que descer para se levantar. Colocou o papel dobrado e mais amassado ainda que antes em cima do caixa, esperou apenas o tempo necessário para que Cora encostasse em sua mão. Então, olhou com carinho para as mãos, encostadas, soltou o papel junto às notas e disse:



- Eu não sei o seu nome.



Deu o sinal e saiu, antes que ela pudesse responder,



(c)

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