quarta-feira, 10 de junho de 2009

Dois e cinquenta - Quarta parte

cora observou com seus olhos inquisidores, um mar revolto de sensações inexprimíveis, o homem sentar-se desajeitado, sozinho. gostaria de que pudessem lhe escrever um poema deste sentimento que parecia só ter despertado em seu peito. lembrou-se de romeu e julieta, aquele filme tão bonito que passou na televisão. se tudo assim fosse tão bonito, não iria complicar o fato dela ser uma trabalhadora, operária, servidora, cobradora. de ela parecer tão feia e mesquinha dentro de seu uniforme sem graça, de ter cheiro de pobre. tudo seria tão somente poesia. e poesia não escolhe cor, nem credo, nem classe. não, senhor. abaixou os olhos, sentindo-se pequena demais. sentiu vergonha de ter sentido tal coisa tão nobre que não pertencia aos direitos da sua alma pequenina.



logo á frente dele, havia uma menina, sempre aquela mesma menina, que parecia ter um olhar tão revolto quanto fora o seu, minutos atrás. o cabelo dela tinha uma cor alucinante, ah sim, sabia que aquilo seria alucinante, aquele vermelho que não era vivo, mas apenas brincava de morto. como se inventando a morte nos fios de cabelo, poderia se passar como despercebida, silenciosa, acolorida. e como uma cobra, dar o bote que ninguém esperava.



aquela perseguição do olhar da menina de cabelo de fogo morto, todos os dias, que deveria ser só de estudante mal-humorada, fazia-a lembrar da sua prima. odiava-a por ter que resgatar aquelas lembranças. era negra e tinha caracóis no alto do cabeça, e olhos castanhos envoltos de ternura. ia muito lá, quando mais nova, e a prima, mais velha, brincava de ser cabelereira. o toque dos seus dedos, leves e levianos, pelo seus cabelos, percorriam sua nuca e brincavam com a orelha pequenina. depois, iam tomar banho juntas, embora já tivesse idade suficiente para se cuidar sozinha, a menina gostava de ensaboá-la. a sua mão percorria lentamente a barriga lisa, dava voltas infinitas no peito pequeno, que ainda se despontava. descia da nuca até os calcanhares tão carinhosamente que parecia tocar uma harpa. dedilhava as pernas, deixando seu rastro de espuma, sempre de olhos fechados e a boca, uma linha torta e esprimida. depois de a secar, parte a parte, colocava um vestido nela e iam dormir. a menina a abraçava na cama de solteiro, e até hoje podia se lembar do seu cheiro de sabonete de erva doce. fazia-lhe carícias bobas e maternais até que alguém ia buscá-la. cora sentia vergonha, e agora, mesmo sentada no ônibus, tinha vontade de chorar, pois seus pelos eriçavam-se e se sentia toda quente. quando chegava em casa, tinha ânsias sem fim, culpada sem saber o crime, chorava baixinho, mas nunca se privava de ir visitá-la. o fim da história que se desenrolava em um colapso, foi quando sua prima tocara os lábios dela nos seus, a lambeu e disse que a amava, e que queria muito que ali ficasse para sempre, do lado, dentro, parte do seu corpo moreno. lembrava como se fosse ontem, seu desespero por sentir êxtase, a culpa que se inflamava por todos os poros, as lágrimas quentes que escorriam por seu rosto; e as mãos da mulher que percorriam todo seu corpo, a voz doce que lhe jurava um amor eterno e livre. depois disso, disse ao pai, pois naquela época sua mãe já morrera, que nunca mais queria voltar na casa de sua prima, que prefereria ficar sozinha. e agora, com os olhos prestes a se derramar, olhou com desgosto a menina, e queria que ela desviasse aquele olhar, aquele olhar de desejo íntimo, e que a transtornava tanto mais que mil homens velhos que a queriam descarademente.



suspirou ao ver que ela descia no seu ponto. o rapaz que a tinha deixado toda gelada e petrificada, ainda olhava para fora, ou não olhava, parecia querer inexistir naquele ambiente. sabia que ele nunca mais voltaria para aquele ônibus. sabia que ele odiaria toda aquela corja de gente junta, se espremendo, fungando, correndo, morrendo. e como ele não a olhava, por nada deste mundo, e como se sentia enojada e terrivelmente minúscula por não ter despertado nem desejo carnal nele, resolvera que lhe falaria. não sabia o quê, mas falaria. precisava lhe falar, seu coração corria atropelado, e já sentia as mãos suando, e via minguando alguma possibilidade de despertar nele, o que nela ocorreu. esperou o ônibus brecar, parar, e se levantou sem passos tímidos.


- é o ponto final, moço.


ele simplesmente a olhou. continuou na sua frente.


- shopping?

- é. osenhorgostadepoesia?

- oi?

- poesia. eu adoro poesia.


ouviu sua risada sem entender.

- não, eu matava aula de literatura. você gosta mesmo?

- eu gosto. muito. - e acrescentou, pois parecia vaga e boba - gosto de alberto caiero. e fernando pessoa. e de vi...

- são a mesma pessoa.

- como?

- isso eu lembro; o fernando pessoa se fingia desse outro, e mais três até.


cora sentiu-se deslocada. nunca deveria ter ido lhe falar, falar ainda desta coisa boba, que é esse gostar sem motivo de ler poesia, e ainda ter de aguentar tal superioridade, só por estar enfiada naquele uniforme.


- eles são bem diferentes, senhor.

- devem ser. os escritores são pessoas meio malucas... menina.

- flora. meu nome é flora, senhor,

(m)

Um comentário:

  1. Como assim ela sabia que ele nunca mais voltaria àquele ônibus??? Ele por acaso tem cara de esnobe?? Eu acho que tem... ele não me parece muito legal. Eu gostei muito da descrição das experiências infantis dela com a prima. Semelhanças são meras coincidências.
    E gostei muito do diálogo deles :]
    Me fez pensar que a Cora em algum sentido é extremamente frágil. tadinha...

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