terça-feira, 13 de abril de 2010

Dois e cinquenta - Décima sexta parte

Rebecca só foi embora pela manhã. Os raios de Sol invadiam o quarto de Cora pelas frestas da janela velha e iluminavam a alva pele nua da cobradora, que agora, ali, já não parecia mais uma oprimida de um sistema falho, mas sim uma conquistadora, uma exibicionista, mostrando todas as suas partes sem pudor, sem abrir os olhos, sem saber e sem se importar. A guria levantou-se pra sair, mas teve de se prender aquela imagem por mais alguns instantes.

A noite que Rebecca tivera com Gabriel não muito antes dessa em nada se comparava, obviamente, mas as comparações eram inevitáveis mesmo assim. O amor com que se possuiram, o jeito com que se olhavam de igual para igual, a maneira como sabiam perfeitamente o que fazer, mesmo nunca tendo feito nada parecido antes, criou uma atmosfera de intimidade sem limites, de energia positiva voando livremente pelo ar que respiravam. O desejo e o carinho se uniam num só, entre uma inundação de mãos leves e insanas que percorriam peles lisas e macias na noite (não muito) calada.

Ao contrário do silêncio que havia entre ela e Gabriel, que era um silêncio constrangedor, cheio de segredos e detalhes não citados, o silêncio de reinava entre as duas mulheres na cama de solteiro era repleto de leituras corretas de pensamentos, de detalhes que sequer precisavam ser ditos, era um silêncio com um sorriso de dentes, um silêncio com corações palpitando no mesmo ritmo.

Levantou-se muito cedo, apertou seus lábios na boca rosada que repousava frouxa na beleza do rosto da moça e rumou para sua casa, o Sol nascendo, querendo nunca mais tirar aquele cheiro de suas roupas. Tomou café e banho, colocou a mesma blusa de frio com cheiro de poesia e foi pro ponto, outra vez, de novo, sempre. Rotina, delícia, ousadia...

Subiu no ônibus pontualmente, o cansaço das pernas não se manifestava porque não cabia dentro de tamanho júbilo de ver Cora novamente, depois daquela noite que se prolongava num dia claro, com algumas nuvens, mais um dia azul.

As duas se olhavam muito mais do que carnalmente agoraa, como se pudessem encontrar a alma uma da outra com o olhar. Aliás, podiam. Sorriam com um pudor guardado nos poros, tentando não demonstrar tanto quanto estavam realmente sentindo. Mas, na realidade, talvez não estivessem conseguindo esconder muito bem.

Rebecca nem havia notado a presença do tal japonês hoje, ele se sentara mais pra trás, estava mais quieto que de costume, até que se levantou num pulo e interrompeu os olhares entre as moças, entrando com seu corpo másculo no meio do caminho. Trocou umas palavras poucas com a cobradora, a estudante franziu o cenho, um tanto enciumada. Quando ele se virou pra trás, porém, ao invés de se contentar e ir se sentar de uma vez, agachou-se ao lado de Rebecca, dizendo:

- Preciso do seu endereço!

-Ãhn? - levantou uma das sobrancelhas e continuou observando-o, confusa.

- Desculpe a intromissão, mas preciso. Não consigo mais viver nos sonhos do seu inferno, queimando no teu fogo.

Não hesitou por nenhum segundo. Antes que pudesse pensar, anotou em um papel o endereço que o maluco pedia e assim que ele foi embora, ela respirou de novo. Só então pôde pensar -ficou com o coração acelerado, pensando em porque raios ela tinha dado a merda do endereço, tão particular, pr'aquele maluco.

À noite, depois da escola, ao chegar em casa encontrou um isqueiro, embrulhado num envelope vermelho, junto dele, um convite...

Estremeceu,

(c)

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Dois e cinquenta - Décima quinta parte

Havia passado todo o fim de semana e agora, na segunda, Miguel voltava a trabalhar. Faltara na última sexta e por isso, mesmo às 6h da manhã e ainda com os pequeninos repletos de remela, estava sedento por fios vermelhos e uma certa íris azul. Se pudesse, naquela segunda cinza e garoada, daria para aquelas duas todos seus fluidos.

Ultimamente ele tem se imaginado 2,50. Elas, 2. Ele, 0,50. Metade, como sempre. Ele nunca fora inteiro mesmo. Passava então eternos segundos entrelaçado no lençol de sua cama, imaginado tais insanidades, até que seu “amigo” dava-lhe um “oi”, e ele corria até o banheiro para suas atividades de macho-alfa.

O dia estava raivoso. O cachorro de sua vizinha, Marieta, tentara-lhe rançar as calças com mordidas enfurecidas; o Chevet da verdura quase o atropelara e por pouco não perde o ônibus e seus dois reais.

Notou o esquecimento. Esqueceram de notá-lo. Ambas trocavam piscadelas e sorrisos enquanto ele, em pé, não conseguia entender nada. E quanto à ele? Não se incluía neste jogo de sedução? E quanto à Caeiro e Vinícius?

¹Quem vai pagar o enterro e as flores se eu morrer de amores?

Por quase toda a viagem seguiu quieto; mal podia-se ouvir sua respiração. Enquanto elas exalavam desejo, ele voltava a se entender japonêsbrasileiroportuguês. Nada inteiro. Decidira então agir. Levantou-se, foi até o azul e disse:

- Não quero in...in..incomodar! mas por Deus, como penso em você! Como nado e flutuo em seus olhos, menina! Prometo não importuná-la novamente, caso seja isso que queira, mas preciso do seu endereço - pronto, gozou. A fala às vezes dava-lhe tesão.

Assustada ela respondeu seca e ríspida. Tinha medo do que Rebecca pudesse pensar. Já Miguel, sorriu aliviado e partiu em direção à 3ª poltrona da fileira do corredor. Fogo.
- Preciso do seu endereço!
- Ãhn?
- Desculpe a intromissão, mas preciso. Não consigo mais viver nos sonhos do seu inferno, queimando no teu fogo.

Ela respondeu, sem demoras.
Ele desceu, mesmo fora de seu ponto, antes que um infarto engolisse seu coração, que agora mais parecia um sambódromo carioca em dia de carnaval. Mas algo alimentava sua curiosidade: por que elas deram o endereço assim, tão facilmente? Talvez ele ainda estivesse inserido no jogo.

Naquela tarde deixou em uma porta uma garrafa água viva, e na outra um isqueiro. Com convites. Convidadas. Passou a madrugada mergulhado em ansiedade, imaginação e corridas ao banheiro,

¹ Vinicius de Moraes

(e)

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Dois e cinquenta - Décima quarta parte

Para os pensamentos que se acomodavam abaixo do vermelho daqueles cabelos, andar de ônibus com a ausência dos olhos de Cora era similar a não haver mais céu. A noite começava a cair e o Sol, ao se pôr, deixava um rastro em meio aos prédios, no horizonte - um alaranjado quente, que enfeitava com perfeição o clima de verão da noite que surgia. Rebecca não sentia muito bem os pés, mantinha os negros olhos fixos ao céu através da janela, acalmando-se com a certeza de que ele não fugiria por uma fresta qualquer do Universo.



Os fones de ouvido auxiliavam no isolamento do mundo - não que fossem necessários, pois este partia de seu interior: do âmago das emoções que, ao arderem com tal intensidade, repeliam tudo o que fosse alheio ao sentimento. Ouvia as palavras do Radiohead com concentração fingida, até que uma frase interrompeu a falsidade de sua atenção:



"your skin makes me cry"



Riu-se. Que tolice! Voltou a mergulhar em seus pensamentos. Carregava entre os dedos um endereço rabiscado por uma caligrafia feminina. Deu o sinal, desceu, rotina.

Os postes na rua começavam a acender quando três ou quatro machos passaram por ela na caminhada, fedendo à sujeira, a trabalho, a excesso de masculinidade, as narinas abertas procurando algum sinal de cio ou de pinga. Arregalaram o cansaço dos olhos em Rebecca e declamaram (à la Bocage) toda a indelicadeza e imundice de seus desejos, na simplicidade operária de seu vocabulário. Ao contrário, porém, da comum repulsão que lhe causavam, neste momento, neste dia, houve algo no interior de seu estômago que se familiarizou com a impureza deles, que a uniu irracionalmente (mas com lógica compreensível) com o sexo sujo que o volume visível em suas calças rotas clamava. Como não bastasse o deturpado carinho, expressou-se em um modesto sorriso uma quase gratidão pelo desejo que lhe fora confiado, em forma de segredo. A blusa que a menina usava chamava atenção aos seios volumosos que Rebecca nunca dava valor, exceto hoje. Ela nunca tinha sido usada, mas o desconforto que essa novidade induzida trazia fora nitidamente enfraquecido pelo segredo que compartilharam. Compreenderam-se no silêncio e, como em respeito à verdade inconstestável que se impôs, os homens se calaram até desaparecerem na esquina.



Na placa azul escura em cima de sua cabeça, viu escrito o nome da rua, seguiu com o coração acelerado até ver os enferrujados números cravados à parede descascada de alva tinta velha. Ela sentia o êxtase da aproximação. Sentia o clímax de toda a sua vida, o impossível acontecendo bem entre as pernas quase cansadas, algo que ficava preso na garganta, que acelerava a respiração e que, principalmente, acontecia, fazendo-a tremer. Com os dedos trêmulos, apertou a campainha. Observou uma sombra andando de um lado para o outro pelo vão debaixo da porta antes de parar por alguns momentos e abri-la - no mínimo, ela não era a única que estava nervosa.


Os olhos azuis encontraram os negros e ambas deixaram escapar no rosto um sorriso bobo. A visão fez Rebecca ficar ainda mais febril. Antes de dizer qualquer coisa, as duas se permitiram, com ar de preciosidade, que se observassem. Sem moedas, sem uniformes, sem barulhos, sem orientais, sem quaisquer olhos julgadores. Cora usava saias e estava descalça. Os olhos, mais brilhantes do que nunca - era um céu cheio de nuvens, de sonhos, de esperanças, de desejos, de não-limitações, afinal, o céu é o limite. A blusa de alças deixava à mostra o sutiã vermelho e chamava atenção a esta região do corpo, a pele branca do colo desenhada pelos ossos. A saia era estampadíssima e terminava em uma renda delicada acima dos joelhos. Além disso, apenas uma tornozeleira cor de cobre amarrada no pé direito.



- Olá - disse Rebecca, encolhendo os ombros, um pouco absorta, ainda, em seus pensamentos profundos. Levou algum tempo até que ela conseguisse distinguir a realidade da imaginação e perceber que, desta vez, ao contrário de todas as outras horas do dia, a cobradora estava realmente ali, bem a sua frente, em carne, osso e em um turbilhão de sentimentos mistos.



Num impulso, Cora abriu um sorriso de dentes e abraçou a menina com força, que por pouco não enlouqueceu, sentindo tão inesperadamente aquelas tantas partes do corpo da mulher tocando o dela. Deslizou as mãos da cintura até as costas, tocando de leve os louros cabelos ao chegar perto do pescoço, sentindo, de olhos fechados, o cheiro bom de seu corpo limpo. Quando se desvencilharam do abraço, houve um breve momento de hesitação, em que seus rostos ficaram muito perto, pela primeira vez.



- Oi... Ai, eu tive tanto medo de que você não viesse... Vem cá, entra!



Os sorrisos nervosos exalavam as intimidades (já não tão) secretas de ambas. O ambiente tipicamente familiar era intimidante e agravava a sensação de pecado, erro, nojo, desejo. Uma contradição corrosiva que parecia aumentar a acidez do estômago. O corpo fervia, enquanto as mãos permaneciam geladas.



- Você quer comer alguma coisa? Tá com fome?

- Hm, não. - sentiu vontade de dizer que a ansiedade de estar com ela não a deixava sentir fome há dias, que seu estômago estava ocupado de emoções e o cérebro já não se importava com o próprio corpo, somente com o da mulher, mas nada disse.


- Ok. Vamos lá no meu quarto um pouco, depois a gente faz um brigadeiro, pode ser? Você gosta?

- Claro... Posso deixar a bolsa aqui?

- Sim, põe ai no sofá.



O quarto era uma cama de solteiro, um guarda-roupa velho de madeira, uma escrivaninha com alguns livros e um violão. Uma das quatro paredes, porém, era especial - nela haviam muitos pôsteres, bilhetes, frases rabiscadas e poesias. Rebecca parou por alguns instantes para observar, enquanto Cora se jogou na cama, abraçando o travesseiro e olhando para a menina com olhar de curiosidade.



- Isso é muito a sua cara. - a cobradora riu, enquanto os negros olhos se desviaram da parede para analisar o corpo deitado sobre a cama. - Eu adoro muito esse do Almeida Garret. - disse, apontando na parede - Os cinco sentidos.



Tirou os tênis e se sentou na cama junto à mulher. Entrelaçou os dedos no emaranhado de cabelos louros e se debruçou sobre ela, ao mesmo tempo que dizia:



- São belas - bem o sei, essas estrelas,

Mil cores divinais têm essas flores;

Mas eu não tenho, amor, olhos para elas:

Em toda a natureza

Não vejo outra beleza

Senão a ti - a ti!



Beijou-lhe o pescoço, sentindo com atenção todas as partes de seus corpos se tocarem. Cora acariciou seu rosto e, com a voz trêmula, continuou:



- Macia - deve a realva luzidia

Do leito - ser por certo em que me deito;

Mas quem, ao pé de ti, quem poderia

Sentir outras carícias

Tocar noutras delícias

Senão em ti - em ti!



Beijaram-se longamente, perdendo as mãos para dentro das blusas, a saia de Cora cada vez mais levantada. Os sons se perdendo ao ecoarem pelo quarto e fazendo toda a racionalidade de seus seres desaparecer, dando lugar apenas a um sentimento recíproco, que se confundia carnalmente com o amor, mas pouco importava pois nada havia, nenhum problema, senão o excesso de desejo amassado entre as duas. As roupas apenas atrapalhavam o tato e rapidamente foram descartadas.



Enquanto Rebecca sentia o gosto do corpo de Cora, ela apertava com força os lençóis, de olhos fechados e ofegante declamou, por fim:



- A ti! ai, a ti só os meus sentidos

Todos num confundidos,

Sentem, ouvem, respiram;

Em ti, por ti deliram.



Os cabelos vermelhos, que estavam numa bagunça incompreensível, se levantaram para encarar o par de olhos azuis. Com a respiração forte, as duas se olharam por um tempo incontável.



- Qual é o seu nome?


A cobradora riu e a beijou antes de responder ao pé do ouvido:


- Cora... Meu nome é Cora.



Rebecca escorregou as mãos pelas costas brancas de Cora. Cora... Fechou os olhos e enterrou todos os seus pensamentos e sentidos naquela pele lisa. Sorriu de leve, satisfeita, e por dentro algo incrível tomou conta de seu equilíbrio. Os olhos quase inundaram, contrapondo seu sorriso imenso, numa confusão de pele, mãos, dedos, pernas, braços, beijos, sons, sombras, céu, poesia e inferno. Soube, sem pensar duas vezes - Thom Yorke tinha razão,

(c)

terça-feira, 21 de julho de 2009

Dois e cinquenta - Décima terceira parte

cora não se cabia mais dentro de si mesma. os dias se arrastavam, feito um rio que corre e nunca desvia de seu curso. sua alma se agitava, em timbres desesperados. ver a menina, seus cabelos vermelhos que esvoaçavam enquanto andava, ir falar com seu amor de olhos orientais havia lhe matado. foi feito choque de dois mundos, que deveriam ser sempre inseparáveis. quiser ser ela como água, ele como óleo. sabia que isto era obra dela. uma provocação sutil, por aquela preça que o destino lhe pregara. o bilhete ir parar em mãos erradas - e não menos queridas - bastaria para que ela tornasse todas as suas concepções celestiais em inferno. via já os dois, juntos, a rir-se dela. e quando para que julgasse que eles a queriam - ou pelo menos seus olhos diziam isso - agora se desfaziam dela, se querendo a si próprios, e isso suprimia o desejo que tinham por ela. pois não era esse desejo, se mesmo existisse, apenas invencionice da cabeça ociosa? por que sentiriam tanto por ela? não tinha nada a oferecer, passava o dia sentada, contando dinheiro, distribuindo uns sorrisos falsos. era certo que era bonita, talvez fosse, os homens sempre disseram isso a ela, mas que beleza não é tudo. e o que tinha mais ela? a menina era estudada, sabia de muitas coisas do mundo, e ele! nem se fala. ele já trabalhava, entendia mais de poesia que ela - mesmo sem gostar (e isso doía ainda no seu ego); seriam perfeitamente um casal. um casal como quiseram os outros, todos os outros, o mundo lhes aprovaria. mas ela, com um ou outro, não cheiraria bem. sentia-se feito uma confusão, feito centelha de coisa errada, que desse a entrar na vida calma das pessoas. e assim, chorava, escondida, molhava o travesseiro, sentia as lágrimas chegando ao ver os dois subindo no ônibus. sentir-se o que atrapalha, como o que meio sendo bruxa de conto de fada, era muito para si. sempre foi tão estimada! agora era só escuro que se esmorecia. ah, mas não. não devia de ser assim. não podia ser assim!


aquela menina, de cabelos vermelhos, aquela menina é que mais se aconchegava na sua mente, ia recostando à sua alma, fazendo-se sentir em seu corpo. como que a gente preferisse pelo que há mais de errado: pois era menina, era mais nova, e era um inferno. provocava cora, fazia a sentir assim, trocada de papéis, inferno ela mesma, mas o diabo era aqueles cabelos vermelhos, aqueles olhos desejosos. ela não podia inverter assim os papéis! a verdade era que queria-a mais que nunca. como se querê-la bastasse para matá-la. bastasse para se reafirmar como coisa que vale muito, que vale ser amada. necessitava que a amassem. pensava muito em seu corpo delgado, tentava lembrar-se de seu cheiro, demorava-se em seus olhos. o sonho a consumia.


queria falar. ia falar. não ia deixar que a atração que ela exercia na menina morresse, e fosse debandar por outros cantos, principalmente aquele canto, aquele canto de olho puxado. e depois que matasse a sua sede dela, partiria para ele. sim. separados assim, daria um jeito de fazer os dois se odiarem. e ela não perderia nenhum. ela ia ter para si o que merecia. afinal, que Deus é esse que a bota como cobradora, como pobre, e não dá nem direito de amar? de amar, todas as criaturas tem poder. e de amar, dois, um, três, quanto lhe cabesse no coração. quanto lhe coubesse no desejo.



viu a menina, os cabelos vermelhos, a camiseta apertada. a curva da sua cintura, as pernas compridas que tinham um passo rápido e decidido. os cabelos, ai, cabelos, as curvas no alto, vermelhos, ai, vermelho feito desejo, feito o sangue que corria depressa na veia. veio vindo, como sempre. olhava com menos ardor para cora, agora. ela sentia. não tinha certeza mas sentia. passou pela catraca. atrás vinha muita gente, não podia lhe falar com aquela gente toda atrás.


- ei... espera um pouco, aqui? quero falar...

a menina espantou-se um pouco. não quis ver toda sua reação. tinha que receber dinheiro, liberar catraca para aquela gente, feito bois, rebanho, cheio de sono, cheio de tédio, cheio de ódio. as pessoas cada vez mais minavam sua coragem de falar aquelas besteiras à ela. tão bem ensaiadas. a última pessoa passou, tão desconhecida como todas as outras. rostos que não significavam nada. tinha medo de olhar para o rosto que significava-lhe tudo.

- bem... é que...


perdera o começo, perdera a fala. o coração bombeava, sentia as mãos suadas. a boca abriu, a fala não veio. não devia se mostrar tão nervosa. era uns cinco anos mais velha que ela, talvez menos, talvez mais. deveria ser adulta, deveria ser perversa. como ela fora. deveria falar.


- é que... já disse como você se parece com uma prima minha?


a menina sorriu. um sorriso doce. aquele sorriso tranquilizou, um pouco, seus batimentos, seu nervosismo, o estranhamento da própria voz.


- não, pareço como?

- não a aparência, claro. ela é negra, e é mais alta, talvez seja, e tem um cabelo todo louco, sabe? mas me parece em outra coisa.

- que coisa?

- não sei, acho que são os olhos.


os olhos da prima eram cheio de ternuras. o dela, eram inferalmente cheio de desejos. embora ternura e desejo sejam a mesma coisa, no fim. não era certo mentir assim, mas não conseguia dizer a verdade. lembrava a prima no que ela a fazia sentir.


- os olhos, como, de serem pretos?

- não, o jeito de olhar. e o meu jeito de retribuir.


corou-se toda. que ironia, cora corada. você que odiava esse nome! talvez fosse bem feito receber ele.


ela sorriu mais, se era possível. sorriu com os olhos, a boca, o nariz, o corpo todo. trazia certo triunfo nisto.


- olha... você quer me ver mais tarde? posso falar mais da minha prima.


riu, nervosa. pareceu boba, criança. tinha que contar suas verdadeiras intenções. seria agora, agora, já. e continuou em seguida:


- que besteira, não é? mas é que eu ando pensando muito em você... e rezado para que pensasse em mim também. se bem que Deus, se for como as pessoas dizem, não irá muito me ajudar neste caso, eu, você. mas bem, pode ser que tudo seja fruto da minha imaginação. pensar que você aceitasse, convite de cobradora, assim. que bobeira.


desta vez foi sua vez de sorrir, para descontrair. sentia as mãos molhadas, a vista até turva, de tão nervosa que estava. seu estômago se retorcia, dando nós em si mesmo, não aguentava mais assim sentir-se.
a menina abriu a boca para falar. não conseguia destinguir as reações dela, tal era a confusão que tinha dentro de si. antes de deixar ela falar, resolveu desembuchar, como com medo de sair não daquela boca tão bonita.


- olha, estou tão nervosa... pega nas minhas mãos, vê como estão suadas,





(m)

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Dois e cinquenta - Décima segunda parte

Miguel não tinha grandes sonhos ou ambições. Crescera sozinho, sendo chamado de nerd, por mais que tirasse notas medianas. Aliás, se tinha algo que o perseguia era a mediocridade. 
Tudo era pela metade na vida dele. Era meio alto e meio baixo. Olhos meio abertos e meio fechados. Meio português e meio japonês. Odiava até mesmo os médiuns, os queijos meia-cura, as pessoas mais ou menos, os dias meio chuvosos. Gostava do amor, isso sim gostava. 
Mas como já disse ele não costumava muito vê-lo por ai.
 Gostava também de quem transparecia esse sentimento, como aquele menina dos cabelos de fogo que olhava naquele dia olhava incessantemente para seus cabelos (os únicos inteiros nele, completamente lisos e sedosos). Mas ele novamente estava na metade. Não daria para ter os cabelos de fogo com o mar azul como no sonho da noite passada?



Eis o sonho:



Fitava com certo ardor e frio na barriga seu rio-lago-mar azul. E ela, junto com ele, mordia a mão em pensamento. Como se conversassem por telepatia, transmissão de pensamento. 
Enquanto isso sua menina-fogo recitava incessantemente poemas de Fernando Pessoa. Ambas vinham em sua direção naquele corredor de ônibus. Agora eram as duas com sutiã de renda preta,como o do sonho passado. Tão próximas era possível sentir o cheiro de libido que exalava daqueles corpos.


O Fogo agora escrevia doces palavras no corpo do Mar, descobrindo pernas, braços, seios, colo e soltando palavras em sua boca, que depois partia em busca de descobertas no nosso japonêsportuguês, chegando a lugares já esquecidos à algum tempo.


Nunca, em lugar algum, se vira tanto deseja e a combinação Fogo e Mar nunca fora tão perfeita e completa. Nenhum tornava o outro impotente, mas se fortificavam. Deixavam de ser meio e passavam ao inteiro que inteiramente se entregava à Miguel. 



Agora, acordado, na mesma poltrona que sacoleja, ele via Fogo e Mar. Se afogava e ardia.

 Sentia-se queimar aos poucos. A roda de fogo se fechava. 
Já falara certa vez sobre poesias com Mar. E agora se cedia a tal com Fogo.
 Os cabelos escorriam pelo seus ombros como se fossem sangue e seus lábios acompanhavam perfeitamente seu tom. Os seus olhos ele sabia serem da mesma cobradora dona dos seus. Mas pouco importava.



Mas voltando aos poemas, com ela conversara sobre outros, afinal, vai saber se elas não se comunicariam por pensamento ,assim como ele com a sua cobradora em seu sonho.
 Mas também não se lembra de muitas palavras e o barulho da cidade era ensurdecedor aquele dia. Se lembra muito bem somente daquele barulho, parecido com o de fogueira....saia do coração daquela menina.



¹A maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a dor do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana.


A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo,
o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro.



O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e ferir-se,
 o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. 

Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes de emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto de sua fria e desolada torre.




Ele renascia para o amor do doloroso encontro do fogo e da água. O ardor e o frescor,

¹ Vinicius de Moraes

(e)

domingo, 5 de julho de 2009

Dois e cinquenta - Décima primeira parte

Rebecca lembrava-se com nitidez das palavras que rabiscara para a moça enquanto subia no ônibus naquele dia ensolarado:

¹O Mundo não se fez para pensarmos nele

(Pensar é estar doente dos olhos)

Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.
Eu não tenho filosofia; tenho sentidos...

Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,

Mas porque a amo, e amo-a por isso

Porque quem ama nunca sabe o que ama

Nem sabe por que ama, nem o que é amar.

As palavras repercutiam em sua cabeça como se estivessem escritas nas rodas dos carros, bem em frente aos olhos - nas placas, no Sol que nascia calmamente esticando seus raios pelas frestas da cidade, nas pessoas que corriam apressadas. Mas porque a amo, e amo-a por isso. As palavras do poema passavam diante de seus olhos arrastadas pelo vento e se enroscavam em seus cabelos vermelhos, davam aos ouvidos um outro tom. Nem o que é amar. Todas as notas, estranhamente, estavam uma oitava acima para Rebecca.

O homem oriental encontrava-se exatamente à sua frente enquanto caminhavam em direção ao centro do ônibus. Ela sabia que para ele, tanto quanto para si mesma, aquele centro significava muito mais do que uma simples catraca. Observando-o, de costas, sentiu um certo apego pelo sentimento compartilhado dos dois. Talvez ambos sofressem pelas mesmas longas horas, talvez ele sentisse, também, aquele frio e medo da impossibilidade de um amor tão imenso - uma dor quase física. Os cabelos dele atraíram a menina por alguns segundos - lisos, macios, mal cortados e um pouco grandes demais. Pegou-se pensando em sentir sua maciez nas mãos. Estranhou o sentimento repentino, mas esqueceu-se de olhar para Cora por algum tempo. Em vez disso, observou aquele corpo bem vestido à sua frente. Enfiado naquele terno tradicional, de corte perfeito, costura finíssima, encontrava-se um homem bonito. Há tempos Rebecca não prestava atenção em um homem. Ele estava com um All Star de couro preto naquele dia. Ela se sentiu em casa por este fato. As mãos dele eram lindas. Se havia uma coisa que a menina reparava nos homens eram as mãos e as de Miguel eram perfeitas - grandes, muito masculinas, com calos e as unhas mal cortadas. Se distraiu quando as mãos que tanto olhava deixaram o ferro do banco em que se seguravam para entregar uma nota azul para Cora. Viu, com apertos descompassados no coração, os dois trocando olhares, moedas, notas e um bilhete amassado.

Ficou olhando para a cobradora enquanto ele ia se sentar. Eu te fiz um bilhete, não ele. Franziu o cenho e quis dar-lhe uma bronca, mas Cora desviou o olhar. Com raiva, fingiu não se importar. Passou os olhos pelo ônibus a procura de Miguel. Ele estava sentado, com suas mãos de homem tão atraentes em um banco de duas pessoas, sozinho, na janela, no fundo do ônibus. Fingia se concentrar em um livro, mas olhava para a mulher com frequencia. Rebecca riu. O que é que essa mulher tem, meu Deus?

Não teve dúvida - sentou do lado dele e disse, contente:
- Oi, meu nome é Rebecca.

Ele virou a cabeça devagar e disse um oi estranho, como se dissesse: Por que raios você está falando comigo? Mas a menina não parou, quis interessá-lo, distrai-lo. Internamente pensava: vem comigo, vamos nos esquecer dela. ²Who needs love at all? Nestes 40 minutos, Rebecca se surpreendeu com sua própria capacidade de ser sociável. Conseguiu arrancar dele alguns sorrisos que pareceram muito sinceros. Disse tchau com um beijo no rosto e sentiu de perto o cheiro dos negros cabelos lisos.

Ao encontrar Gabriel na escola, o beijou com gosto e o convidou para ir até a sua casa à tarde. Ele pareceu surpreso, mas, obviamente aceitou o convite. Depois, passou a aula toda balançando as pernas, apertando o botãozinho da caneta, sem prestar atenção em nada. Rebecca só achava engraçado. Esses meninos... No intervalo, ele não deu atenção ao grupo de meninas exibidas e efusivas que se fez em volta dele. Elas falavam muito e ele respondia monossilabicamente. Desviava o olhar delas se jogando em cima dele para olhar Rebecca, sempre. Ela, só achava engaçado. Quando a aula acabou, ele parecia prestes a explodir. Os dois deram as mãos e não se falaram, o silêncio pairava de forma incômoda para ele, engraçada para ela. Ela ria do silêncio e do nervosismo. O que a fazia nervosa estava longe dali, ela nem sabia onde e não se importava porque não era de manhã. Enquanto caminhavam para casa em silêncio, ela só pensava na cobradora e em suas carnes sobressalentes tão dignas de admiração. Minto, ela pensava também em Miguel e no notório impressionante volume em suas calças sociais. Precisava tanto descarregar essas forças que sentia tão intensamente... Precisava muito, queria gritar e sentir na pele o prazer que sentia em segredo na alma.

Quando entraram no quarto, ela o beijou ao mesmo tempo que deixou aos mãos explorarem locais desconhecidos do corpo dele. Gabriel estava paralisado, os músculos do corpo todo tão duros quanto seu pênis. Ela desabotoou as calças dele e o empurrou em cima da cama. Tirou a camiseta enquanto o moleque a olhava, com os olhos arregalados.

- Lembra que eu disse que faríamos quando eu estivesse pronta?
- Ahn... É... Aham. Lembro, lembro.
- Eu estou pronta.

Ela se deitou em cima do menino e fechou os olhos. Gabriel foi se acalmando, aos poucos. Apertou os cabelos dele nas mãos sentindo a maciez dos de Miguel e viu o céu e o mar, misturados loucamente num azul maravilhoso, presos dentro de olhos orientais. Gritou o mais alto que pôde. Sentia-se dentro da história. Sentia a história dentro dela. De olhos fechados, Rebecca pôde ver tudo o que quis,

¹ Alberto Caeiro - O Guardador de Rebanhos

² Amanda Palmer - Leeds United

(c)

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Dois e cinquenta - Décima parte

Sonhei, confuso, e o sono foi disperso,

Mas, quando dispertei da confusão,

Vi que esta vida aqui e este universo

Não são mais claros do que os sonhos são. 
Fernando Pessoa



acordou no meio da noite, os cabelos colados à cara de tanto suor que cobria seu rosto. o quarto estava abafado e demasiado escuro. seu peito ainda subia e descia em descompassado desespero. acendeu a luminária. cora raramente sonhava. seus dias eram tão cansativos, que bastava esticar-se na cama para dormir a noite inteira sem nenhum sonho invasor lhe pertubar. mas os seus sentimentos caminhavam por linhas tortas que nem ela conseguia entender, o suficiente para que abrisse inconscientemente as portas de sua mente tranquila.


sonhara que estava em uma poltrona aveludada vermelha, e que à sua frente aquele oriental a lambia. enquanto beijava todas as partes do seu corpo com violência, ia dando aos seus dedos notas amassadas e moedas de cinquenta centavos que caíam a todo instante, irritando-a. mesmo que isso a constrangisse, não conseguia impedir que suas mãos buscassem aquelas notas azuis, como se fosse corriqueiro demais para parar. ele abriu o zíper da sua calça, e a pressionou contra a poltrona. cora se sentiu afundada, feito uma folha fina de papel. fechou os olhos e esperou seu delírio. não viera. viu que o corpo branco e magro dele se movia incessantemente, ouvia sua respiração rápida e seus gemidos baixos. não entendia.


- eu não sinto nada.


ele, sem ao menos olhá-la, lhe deu outra nota acompanhada com a maldita moeda, que escorregou e tintilou no chão. o barulho de uma só moeda poderia ser de milhões. cora o empurrou, já chorosa, e correu pelada para a saída, uma saída escura em meio à parede branca. viu lá a menina de cabelos vermelhos e sua prima.


- eu odeio essas moedas.

sua prima riu alto.

- eu sei do que você gosta, nenê.

em seguida, cora se afogava com duas meninas que tocavam sua pele, lambiam sua orelha, beijavam sua boca. se sentia sufocada, e pedia para que elas saíssem de cima, mas parecia que ninguém a ouvia. abriu a boca em um grito de socorro, mas não ouviu sua voz ecoar. a última imagem que se lembrava, antes de abrir os olhos, foi de alguns cabelos vermelho sangue que invadiam sua boca, e enroscavam-se nas suas cordas vocais.



agora, sentada em segurança na sua cama, tentava acalmar seu coração. dizia para si baixinho, como sua mãe costumava fazer quando era criança: foi só um sonho, cora, foi só um sonho. sentou, abraçando seus joelhos. viu que não mais conseguiria dormir, por isso achou melhor dobrar seu uniforme, pois o deixara jogado no começo da noite. junto à blusa branca, distinguia uma linha vermelha. a pegou, curiosa. era um fio de cabelo. levou as mãos ao pescoço, como se seu sonho pudesse invadir a linha da realidade. sentou-se na cama. seu coração agitava-se novamente. por que sentia tanto medo? era só um fio de cabelo. abriu a boca e fez força para que sua voz saísse. sim, obrigada. lembrou-se repetinamente do bilhete que ela havia entregado. desamassou-o e olhou aquela letra bonita, um pouco torta, desenhada no papel. talvez aquela menina gostasse mesmo dela. teve já parceiros, mas poucos gostaram dela de verdade. todos queriam sexo e um pouco mais depois. mas o pouco mais era sempre muito pouco. e seus parceiros eram sempre da mesma linha, gente mesquinha, trabalhadora, que se cansava todos os dias, e que só queria descansar o corpo noutro tão cansado quanto o próprio. eles nunca entendiam suas rimas, e depois de algum tempo, pediam para que ela se calasse apenas. talvez era por isso que seus olhos se engradeciam até por uma estudante, assombrada pelo fantasma de sua prima, ou um rapaz que não tivesse que se cansar. que andava de ônibus porque queria. o poder de escolha, destas duas pessoas, a fascinava. o poder de escolha, que nunca pôde ter. e talvez por isso, tanto uma quanto outro, lhe arrancavam os mais nobres sentimentos descritos por todos os poetas do mundo. ficou acordada até a hora de ir trabalhar, dando-se o luxo de tomar um banho demorado, lavar seus cabelos e preparar-se para a batalha de sua alma insaciável. arrancou uma folha de seu caderno e copiou:




¹Se eu te pudesse dizer

O que nunca te direi,

Tu terias que entender

Aquilo que nem eu sei.


dobrou-o. escreveu na frente, depois de diversas tentativas "para seus olhos que me fitam (e que me encantam)". sorriu, satisfeita consigo mesma.



estavam os dois, no mesmo ponto. o rapaz mal-humorado fitava o mundo através de seus olhos puxados. a menina, que estava também mal-humorada, pareceu que sorriu ao ver o ônibus se aproximar. cora retribuiu um sorriso tímido, mesmo sabendo que ela não poderia vê-lo. segurou nos seus dedos o papel, já amassado. achava que o entregaria todo molhado, pois transpirava de nervoso. ensaiara mil vezes entregar o papel para ela, desde a manhã.
vinha em direção à catraca, primeiramente, o homem oriental. vinha, como sempre, um pouco cabisbaixo e inseguro. ao entregar seu dinheiro contado, a olhara. cora não esperava esse olhar. pegou o dinheiro, um pouco desastrada, e ao fazê-lo, deixou cair o papel que segurava. seu coração agitou-se feito louco dentro do peito, como se ele mesmo fosse capaz de parar o papel no meio do ar e desfazer o momento desastroso. ele se abaixou para pegar o papel. lia-se naquela letra pequena e mal-feita,
para seus olhos que me fitam 
(e que me encatam)
 segurou, confiante, e sorriu para ela. cora viu em seus olhos tamanho júbilo, como se refletido neles encontrava-se o paraíso, que não pôde falar mais nada, além de sorrir, ruborizada.


quando a menina passou pela catraca, cora tentou parecer que se concentrava em alguma coisa muito interessante lá fora, no céu azul, porém recheado de nuvens cinzas de maus presságios,



¹ das quadras populares portuguesas, Fernando Pessoa.

(m)

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Dois e cinquenta - Nona parte

Ela caminhava lentamente pelo corredor daquele ônibus. Era possível admirar, através de seu uniforme branco e velho, os desenhos formados pelos detalhes em renda de seu sutiã negro. Incrivelmente delicado; quase uma ninfa.


Caminhava com as pernas um pouco torcidas, assim como os olhos de Miguel.
 Era a timidez, que a deixava ainda mais encantadora.
 Chegou até Miguel e começou a falar tantas coisas, mas nada pôde ouvir. Naquele momento estava muito ocupado em reparar suas curvas, seus olhos e seus seios, enormes e roliços.
 
Aos poucos passou a compreender algumas palavras e quando deu por si estavam abraçados, deitados do chão frio com cheiro de moedas caídas. Ele, ela e seu sutiã negro de rendas (certo que perecia os de sua avó, mas nela tudo fica belo). 
Disse-lhe então ao pé do ouvido, com a voz um pouco trêmula e os olhos azuis escondidos por detrás das pálpebras:



-Você se contenta em me ver?


- A mim este Sol, estes prados, estas flores.

Contentam-me.

Mas, se acaso me descontentam,

O que quero é um sol mais sol 
que o Sol,

O que quero é prados mais prados 
que estes prados,

O que quero é flores mais flores 
que estas flores

- 
Tudo mais ideal do que é do mesmo modo e da mesma maneira!



E então ela beijou nosso japonês e fizeram amor durante horas e horas. Seu corpo sobre o dele, se uniam agora em um só. Sentia sua respiração, seu tremor, a batida de seu coração.

Tuntun, tuntun, tuntun.



Acordou.



Correu até o banheiro pra se banhar. Tomou seu café amargo ainda pensando no mar (ou lagoa, como já disse) azul.
 Correu para o ponto, já havia se entregado a vida de operário e pegava o ônibus religiosamente, todos os dias. Subiu envergonhado, como se a cobradora pudesse ver em seus olhos todo seu ardor masculino, então olhou fixamente pro chão.



-Tome seus dois e cinqüenta - disse em tom rude.



Ela admirou-se com tamanha rispidez e pegou o dinheiro, sem pronunciar uma só palavra.


Depois de meia dúzia de mordidas na mão (mania já citada anteriormente) resolveu olhar para sua musa, a cobradora. Virou-se decidido a convidá-la pra sair, foi quando ouviu sons saídos de sua boca para uma ruivinha sem graça e sem jeito sentada em sua frente.



Deja vu.

Ela roubara-lhe o sonho,



(e)

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Dois e cinquenta - Oitava parte

Era só mais um dia entre tantos, misturado num emaranhado de dias flutuantes que seguiam sem deixar explicação. Do lado de fora da janela, a segunda-feira começava a acordar, espreguiçando-se devagar, com a pressa de quem ainda tem a eternidade pela frente. Como de praxe, Cora veio visitar Rebecca nos sonhos. Diferente, desta vez, porém - não foram sonhos perturbadores da madrugada, que deixavam de lembrança dias atormentados e nuvens cinzentas; foi um sonho de manhã. Um sonho bom, matinal, que deixou um gosto muito mais característico na boca pelo dia afora: um gosto azul-bebê, uma cor tão Cora, tão doce, tão deliciosamente sinestésica. Se Rebecca soubesse o nome da cobradora, certamente haveria multiplicado as inúmeras associações que ligavam aqueles claros cabelos com o belo sonho. Naquele amanhecer, tudo era luz, tudo era um pingo de felicidade, que tomou conta, de repente, do mar revolto que eram os pensamentos da adolescente.



Tomou um café da manhã reforçado, como quase nunca fazia. Estava disposta, diferente. Estava de saída, mas chamou-lhe a atenção uma folha muito bonita entre os materiais escolares, em cima da escrivaninha no quarto. Era uma folha que ela nunca havia visto antes. Era o destino, que brincava com ela. A folha estava ali, a atiçar a menina, a colocá-la em prova. Uma lindíssima folha azul-bebê, surgida do nada, em cima da escrivaninha,naquele dia. Apanhou a atrevida folha, dobrou e a enfiou no bolso, sem cuidado.



- Mãe, tô indo, viu? Fica com Deus.

- Que sorriso é esse, viu o passarinho verde, foi? - a menina riu, sem graça - E, por um acaso o nome dele é Gabriel, é? - a mãe a abraçou, com ternura. Por um instante, Rebecca congelou. Sentindo o corpo rechonchudo da mãe a envolvendo, desfez o sorriso e deixou fugir uma parcela do encanto da manhã.

"Eu sou a prosopopéia do pecado, não há dúvida." - pensou. Ela nem lembrava-se do nome do garoto, na maioria dos dias. Esforçou-se ao máximo para recuperar o sorriso e mantê-lo intacto para responder "Claro, né, Dona Paula?", mas aquele sorriso não era nem um pouco dele. Um pecado que não podia conter. O sorriso tinha outro nome, um nome que ela nem sequer sabia qual era. Mas tirando este detalhe, sabia de cor todos os outros que pôde decorar com os olhos. Um pecado incontrolável.



Saiu de casa tentando afastar a cruel escuridão da dúvida e fazer-se luz, por só mais um momento. Eram raros os momentos em que fosse luz. Desde o fatídico dia em que acordara mais cedo e encontrara Cora, então, menos. Tornava-se cada vez mais desbotada. Corrompida por um desejo proibido que a consumia. Por vezes, ela até queria ser luz outra vez, mas quase sempre gostava daquela escuridão, de ter se tornado pecadora e quieta. Esconder de si mesma não adiantava mais, ela queria de verdade ser aquilo, ter aquilo. E ela sabia, no fundo, sempre soube. No meio das trevas que criara para se esconder do mundo, havia encontrado um pedaço da sua paz, ainda que apenas em pensamento.



No ônibus, não evitou olhar a moça aquele dia. Ela estava tão bonita quanto em seu sonho. Em todos os detalhes. A pele branca que saia do uniforme, displicente; os cabelos mal presos, loiros, bagunçados com o vento da janela aberta; os olhos, ah, os olhos; as pernas cruzadas e... tudo. Tudo nela era tão encantador quanto o que todos sabiam reparar. Rebecca ia além, reparava em cadadetalhe e ficava tonta, só de olhar. Era muito para os olhos, e não só para os olhos porque aquela imagem a invadia através dos olhos e alcançava a alma, com toda a força. Agarrava-se nas entranhas e permanecia.



Talvez porque a estivesse encarando com olhares famintos, mas Cora a olhou de volta. Todos os olhares daquele azul não eram passíveis de interpretações lógicas. Era isso o que os deixavam mais interessantes? Mais loucos? Era isso o que a enlouquecia? Ah, certamente que era. Quando achou que não caberia mais falta de discernimento em seu ser, Cora dirigiu-lhe a palavra:



- Mas, se acaso me descontentam,

o que quero é um sol mais sol que o Sol,

o que quero é prados mais prados que estes prados,

o que quero é flores mais estas flores que estas flores. Pode passar.



Sentiu-se desmoronar. Não agiu. Não passou a catraca. Em vez disso, desviou o olhar: APROXIME O CARTÃO. Passado o choque inicial, finalmente ela pôde obedecer a frase. Aproximou seu cartão escolar, passou e sentou-se no lugar exatamente em frente à cobradora. Apoiou os pés na cadeira dela. As duas cruzaram o olhar por um segundo meio eterno, sem nem conseguir pensar em nada, debaixo dos cabelos vermelhos encontraram-se todas as declarações de amor do mundo naquele instante. Até que Rebecca abriu a bolsa, pegou uma caneta, tirou um papel amassado do bolso do jeans e rabiscou uma frase.



Ficou ali, alternando olhares para a frase que escrevera e a mulher para quem escrevera a frase. Esperou chegar muito perto do ponto em que tinha que descer para se levantar. Colocou o papel dobrado e mais amassado ainda que antes em cima do caixa, esperou apenas o tempo necessário para que Cora encostasse em sua mão. Então, olhou com carinho para as mãos, encostadas, soltou o papel junto às notas e disse:



- Eu não sei o seu nome.



Deu o sinal e saiu, antes que ela pudesse responder,



(c)

domingo, 21 de junho de 2009

Dois e cinquenta - Sétima parte

cora, ao chegar em casa depois de um longo dia de reviravoltas em sua alma, queria apenas desmaiar. ainda assim, preparou o jantar e ouviu seu pai reclamar do parco salário que eles ganhavam. todos os dias ele reclamava, e dizia que não acreditava ter sua filha no mesmo patamar social que ele tentou fugir por toda sua vida. eles deveriam pensar em enriquecer, em mudar de vida, pois aquilo era uma desgraça.


- mas foi você que me arranjou o emprego. e foi aí que eu desisti de estudar.

- e eu sempre te disse que estudar não é o caminho certo, cora.


já não discutia. a sua contestação ficara perdida nas noites que passou chorando o futuro que haviam lhe desenhado. já não esperava nada, apenas esperava esperar suas paixões ultrapassarem catracas e adentrarem em seu mundo adornado. e suas paixões impulsionavam sua alma confusa e estrábica, um pouco torta e sem cor, mas sabia que tudo se explicava por todos os sorrisos, por todos os olhares. e aqueles olhares que estremeciam seu coração, acaloravam seu dia deixavam-na insana por dentro. e não era apenas aquele homem de olhos orientais, que muito a assustava, com toda sua pompa a destrambelhar pelo transporte público. era, também, aquela menina, que suscitava tais lembranças apimentadas, que queimavam sua garganta, enquanto a deliciavam. 
lavava calmamente a louça do jantar, brincava com a espuma pelos pratos sujos, lembrava-se das cócegas na sua pele. sentia a água gelada que desabrochava da pia, e a espirrava fazendo-se rir sozinha. que besteira, cora, você está se metendo em confusão. sim, estava, mas já não tinha tanta preocupação. queria percorrer caminhos nunca dantes vistos, escorregar por mundos que a fizessem sentir um pouco mais diferente. que a fizessem um pouco mais feliz, completa, irrigada. queria viver o que as linhas sonhadoras de seus poemas lhe sussurravam todos os dias, e já não achava erro ter direito à sentir isso. não era privilégio de ninguém, era apenas de quem se aventurasse. não sabia quem é que se encaixaria perfeitamente com sua alma cheia de vontades, mas não ligava. simplesmente lhe apetecia a idéia de ter entre os dedos cabelos vermelhos e dentro dos olhos outros mais puxados. era, sim, absurda, hiperbólica, colérica. queria tanto gritar, para afastar todos os pensamentos mesquinhos que insistiam em puxá-la para baixo e recuar pelos caminhos: ¹pouco me importa/ pouco me importa o que? não sei: pouco me importa.


fez silêncio para ver se dento de si mesma resurgiam as vozes desanimadas, como patos soluçando, mas parecia que tinham desistido. ouviu os roncos distantes do seu pai. caminhou na ponta do pé, pegou seu velho livro de alberto caeiro e sorriu.




no dia seguinte, quando viu aquele emaranhado vermelho-morto se aproximar, e tais olhos pretos que já a observam, disse-lhe na ponta da língua:


- ²mas, se acaso me descontentam,

o que quero é um sol mais sol que o Sol,

o que quero é prados mais prados que estes prados,

o que quero é flores mais estas flores que estas flores. pode passar.


cora decidira-se por viver, pois sonhar não cabia mais na sua alma, que tinha se tornado grande, tão grande que nem ela imaginava,






¹ pouco me importa - alberto caeiro.
² ah! querem uma luz - alberto caeiro

(m)