quarta-feira, 1 de julho de 2009

Dois e cinquenta - Décima parte

Sonhei, confuso, e o sono foi disperso,

Mas, quando dispertei da confusão,

Vi que esta vida aqui e este universo

Não são mais claros do que os sonhos são. 
Fernando Pessoa



acordou no meio da noite, os cabelos colados à cara de tanto suor que cobria seu rosto. o quarto estava abafado e demasiado escuro. seu peito ainda subia e descia em descompassado desespero. acendeu a luminária. cora raramente sonhava. seus dias eram tão cansativos, que bastava esticar-se na cama para dormir a noite inteira sem nenhum sonho invasor lhe pertubar. mas os seus sentimentos caminhavam por linhas tortas que nem ela conseguia entender, o suficiente para que abrisse inconscientemente as portas de sua mente tranquila.


sonhara que estava em uma poltrona aveludada vermelha, e que à sua frente aquele oriental a lambia. enquanto beijava todas as partes do seu corpo com violência, ia dando aos seus dedos notas amassadas e moedas de cinquenta centavos que caíam a todo instante, irritando-a. mesmo que isso a constrangisse, não conseguia impedir que suas mãos buscassem aquelas notas azuis, como se fosse corriqueiro demais para parar. ele abriu o zíper da sua calça, e a pressionou contra a poltrona. cora se sentiu afundada, feito uma folha fina de papel. fechou os olhos e esperou seu delírio. não viera. viu que o corpo branco e magro dele se movia incessantemente, ouvia sua respiração rápida e seus gemidos baixos. não entendia.


- eu não sinto nada.


ele, sem ao menos olhá-la, lhe deu outra nota acompanhada com a maldita moeda, que escorregou e tintilou no chão. o barulho de uma só moeda poderia ser de milhões. cora o empurrou, já chorosa, e correu pelada para a saída, uma saída escura em meio à parede branca. viu lá a menina de cabelos vermelhos e sua prima.


- eu odeio essas moedas.

sua prima riu alto.

- eu sei do que você gosta, nenê.

em seguida, cora se afogava com duas meninas que tocavam sua pele, lambiam sua orelha, beijavam sua boca. se sentia sufocada, e pedia para que elas saíssem de cima, mas parecia que ninguém a ouvia. abriu a boca em um grito de socorro, mas não ouviu sua voz ecoar. a última imagem que se lembrava, antes de abrir os olhos, foi de alguns cabelos vermelho sangue que invadiam sua boca, e enroscavam-se nas suas cordas vocais.



agora, sentada em segurança na sua cama, tentava acalmar seu coração. dizia para si baixinho, como sua mãe costumava fazer quando era criança: foi só um sonho, cora, foi só um sonho. sentou, abraçando seus joelhos. viu que não mais conseguiria dormir, por isso achou melhor dobrar seu uniforme, pois o deixara jogado no começo da noite. junto à blusa branca, distinguia uma linha vermelha. a pegou, curiosa. era um fio de cabelo. levou as mãos ao pescoço, como se seu sonho pudesse invadir a linha da realidade. sentou-se na cama. seu coração agitava-se novamente. por que sentia tanto medo? era só um fio de cabelo. abriu a boca e fez força para que sua voz saísse. sim, obrigada. lembrou-se repetinamente do bilhete que ela havia entregado. desamassou-o e olhou aquela letra bonita, um pouco torta, desenhada no papel. talvez aquela menina gostasse mesmo dela. teve já parceiros, mas poucos gostaram dela de verdade. todos queriam sexo e um pouco mais depois. mas o pouco mais era sempre muito pouco. e seus parceiros eram sempre da mesma linha, gente mesquinha, trabalhadora, que se cansava todos os dias, e que só queria descansar o corpo noutro tão cansado quanto o próprio. eles nunca entendiam suas rimas, e depois de algum tempo, pediam para que ela se calasse apenas. talvez era por isso que seus olhos se engradeciam até por uma estudante, assombrada pelo fantasma de sua prima, ou um rapaz que não tivesse que se cansar. que andava de ônibus porque queria. o poder de escolha, destas duas pessoas, a fascinava. o poder de escolha, que nunca pôde ter. e talvez por isso, tanto uma quanto outro, lhe arrancavam os mais nobres sentimentos descritos por todos os poetas do mundo. ficou acordada até a hora de ir trabalhar, dando-se o luxo de tomar um banho demorado, lavar seus cabelos e preparar-se para a batalha de sua alma insaciável. arrancou uma folha de seu caderno e copiou:




¹Se eu te pudesse dizer

O que nunca te direi,

Tu terias que entender

Aquilo que nem eu sei.


dobrou-o. escreveu na frente, depois de diversas tentativas "para seus olhos que me fitam (e que me encantam)". sorriu, satisfeita consigo mesma.



estavam os dois, no mesmo ponto. o rapaz mal-humorado fitava o mundo através de seus olhos puxados. a menina, que estava também mal-humorada, pareceu que sorriu ao ver o ônibus se aproximar. cora retribuiu um sorriso tímido, mesmo sabendo que ela não poderia vê-lo. segurou nos seus dedos o papel, já amassado. achava que o entregaria todo molhado, pois transpirava de nervoso. ensaiara mil vezes entregar o papel para ela, desde a manhã.
vinha em direção à catraca, primeiramente, o homem oriental. vinha, como sempre, um pouco cabisbaixo e inseguro. ao entregar seu dinheiro contado, a olhara. cora não esperava esse olhar. pegou o dinheiro, um pouco desastrada, e ao fazê-lo, deixou cair o papel que segurava. seu coração agitou-se feito louco dentro do peito, como se ele mesmo fosse capaz de parar o papel no meio do ar e desfazer o momento desastroso. ele se abaixou para pegar o papel. lia-se naquela letra pequena e mal-feita,
para seus olhos que me fitam 
(e que me encatam)
 segurou, confiante, e sorriu para ela. cora viu em seus olhos tamanho júbilo, como se refletido neles encontrava-se o paraíso, que não pôde falar mais nada, além de sorrir, ruborizada.


quando a menina passou pela catraca, cora tentou parecer que se concentrava em alguma coisa muito interessante lá fora, no céu azul, porém recheado de nuvens cinzas de maus presságios,



¹ das quadras populares portuguesas, Fernando Pessoa.

(m)

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