quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Dois e cinquenta - Décima quinta parte

Havia passado todo o fim de semana e agora, na segunda, Miguel voltava a trabalhar. Faltara na última sexta e por isso, mesmo às 6h da manhã e ainda com os pequeninos repletos de remela, estava sedento por fios vermelhos e uma certa íris azul. Se pudesse, naquela segunda cinza e garoada, daria para aquelas duas todos seus fluidos.

Ultimamente ele tem se imaginado 2,50. Elas, 2. Ele, 0,50. Metade, como sempre. Ele nunca fora inteiro mesmo. Passava então eternos segundos entrelaçado no lençol de sua cama, imaginado tais insanidades, até que seu “amigo” dava-lhe um “oi”, e ele corria até o banheiro para suas atividades de macho-alfa.

O dia estava raivoso. O cachorro de sua vizinha, Marieta, tentara-lhe rançar as calças com mordidas enfurecidas; o Chevet da verdura quase o atropelara e por pouco não perde o ônibus e seus dois reais.

Notou o esquecimento. Esqueceram de notá-lo. Ambas trocavam piscadelas e sorrisos enquanto ele, em pé, não conseguia entender nada. E quanto à ele? Não se incluía neste jogo de sedução? E quanto à Caeiro e Vinícius?

¹Quem vai pagar o enterro e as flores se eu morrer de amores?

Por quase toda a viagem seguiu quieto; mal podia-se ouvir sua respiração. Enquanto elas exalavam desejo, ele voltava a se entender japonêsbrasileiroportuguês. Nada inteiro. Decidira então agir. Levantou-se, foi até o azul e disse:

- Não quero in...in..incomodar! mas por Deus, como penso em você! Como nado e flutuo em seus olhos, menina! Prometo não importuná-la novamente, caso seja isso que queira, mas preciso do seu endereço - pronto, gozou. A fala às vezes dava-lhe tesão.

Assustada ela respondeu seca e ríspida. Tinha medo do que Rebecca pudesse pensar. Já Miguel, sorriu aliviado e partiu em direção à 3ª poltrona da fileira do corredor. Fogo.
- Preciso do seu endereço!
- Ãhn?
- Desculpe a intromissão, mas preciso. Não consigo mais viver nos sonhos do seu inferno, queimando no teu fogo.

Ela respondeu, sem demoras.
Ele desceu, mesmo fora de seu ponto, antes que um infarto engolisse seu coração, que agora mais parecia um sambódromo carioca em dia de carnaval. Mas algo alimentava sua curiosidade: por que elas deram o endereço assim, tão facilmente? Talvez ele ainda estivesse inserido no jogo.

Naquela tarde deixou em uma porta uma garrafa água viva, e na outra um isqueiro. Com convites. Convidadas. Passou a madrugada mergulhado em ansiedade, imaginação e corridas ao banheiro,

¹ Vinicius de Moraes

(e)

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Dois e cinquenta - Décima quarta parte

Para os pensamentos que se acomodavam abaixo do vermelho daqueles cabelos, andar de ônibus com a ausência dos olhos de Cora era similar a não haver mais céu. A noite começava a cair e o Sol, ao se pôr, deixava um rastro em meio aos prédios, no horizonte - um alaranjado quente, que enfeitava com perfeição o clima de verão da noite que surgia. Rebecca não sentia muito bem os pés, mantinha os negros olhos fixos ao céu através da janela, acalmando-se com a certeza de que ele não fugiria por uma fresta qualquer do Universo.



Os fones de ouvido auxiliavam no isolamento do mundo - não que fossem necessários, pois este partia de seu interior: do âmago das emoções que, ao arderem com tal intensidade, repeliam tudo o que fosse alheio ao sentimento. Ouvia as palavras do Radiohead com concentração fingida, até que uma frase interrompeu a falsidade de sua atenção:



"your skin makes me cry"



Riu-se. Que tolice! Voltou a mergulhar em seus pensamentos. Carregava entre os dedos um endereço rabiscado por uma caligrafia feminina. Deu o sinal, desceu, rotina.

Os postes na rua começavam a acender quando três ou quatro machos passaram por ela na caminhada, fedendo à sujeira, a trabalho, a excesso de masculinidade, as narinas abertas procurando algum sinal de cio ou de pinga. Arregalaram o cansaço dos olhos em Rebecca e declamaram (à la Bocage) toda a indelicadeza e imundice de seus desejos, na simplicidade operária de seu vocabulário. Ao contrário, porém, da comum repulsão que lhe causavam, neste momento, neste dia, houve algo no interior de seu estômago que se familiarizou com a impureza deles, que a uniu irracionalmente (mas com lógica compreensível) com o sexo sujo que o volume visível em suas calças rotas clamava. Como não bastasse o deturpado carinho, expressou-se em um modesto sorriso uma quase gratidão pelo desejo que lhe fora confiado, em forma de segredo. A blusa que a menina usava chamava atenção aos seios volumosos que Rebecca nunca dava valor, exceto hoje. Ela nunca tinha sido usada, mas o desconforto que essa novidade induzida trazia fora nitidamente enfraquecido pelo segredo que compartilharam. Compreenderam-se no silêncio e, como em respeito à verdade inconstestável que se impôs, os homens se calaram até desaparecerem na esquina.



Na placa azul escura em cima de sua cabeça, viu escrito o nome da rua, seguiu com o coração acelerado até ver os enferrujados números cravados à parede descascada de alva tinta velha. Ela sentia o êxtase da aproximação. Sentia o clímax de toda a sua vida, o impossível acontecendo bem entre as pernas quase cansadas, algo que ficava preso na garganta, que acelerava a respiração e que, principalmente, acontecia, fazendo-a tremer. Com os dedos trêmulos, apertou a campainha. Observou uma sombra andando de um lado para o outro pelo vão debaixo da porta antes de parar por alguns momentos e abri-la - no mínimo, ela não era a única que estava nervosa.


Os olhos azuis encontraram os negros e ambas deixaram escapar no rosto um sorriso bobo. A visão fez Rebecca ficar ainda mais febril. Antes de dizer qualquer coisa, as duas se permitiram, com ar de preciosidade, que se observassem. Sem moedas, sem uniformes, sem barulhos, sem orientais, sem quaisquer olhos julgadores. Cora usava saias e estava descalça. Os olhos, mais brilhantes do que nunca - era um céu cheio de nuvens, de sonhos, de esperanças, de desejos, de não-limitações, afinal, o céu é o limite. A blusa de alças deixava à mostra o sutiã vermelho e chamava atenção a esta região do corpo, a pele branca do colo desenhada pelos ossos. A saia era estampadíssima e terminava em uma renda delicada acima dos joelhos. Além disso, apenas uma tornozeleira cor de cobre amarrada no pé direito.



- Olá - disse Rebecca, encolhendo os ombros, um pouco absorta, ainda, em seus pensamentos profundos. Levou algum tempo até que ela conseguisse distinguir a realidade da imaginação e perceber que, desta vez, ao contrário de todas as outras horas do dia, a cobradora estava realmente ali, bem a sua frente, em carne, osso e em um turbilhão de sentimentos mistos.



Num impulso, Cora abriu um sorriso de dentes e abraçou a menina com força, que por pouco não enlouqueceu, sentindo tão inesperadamente aquelas tantas partes do corpo da mulher tocando o dela. Deslizou as mãos da cintura até as costas, tocando de leve os louros cabelos ao chegar perto do pescoço, sentindo, de olhos fechados, o cheiro bom de seu corpo limpo. Quando se desvencilharam do abraço, houve um breve momento de hesitação, em que seus rostos ficaram muito perto, pela primeira vez.



- Oi... Ai, eu tive tanto medo de que você não viesse... Vem cá, entra!



Os sorrisos nervosos exalavam as intimidades (já não tão) secretas de ambas. O ambiente tipicamente familiar era intimidante e agravava a sensação de pecado, erro, nojo, desejo. Uma contradição corrosiva que parecia aumentar a acidez do estômago. O corpo fervia, enquanto as mãos permaneciam geladas.



- Você quer comer alguma coisa? Tá com fome?

- Hm, não. - sentiu vontade de dizer que a ansiedade de estar com ela não a deixava sentir fome há dias, que seu estômago estava ocupado de emoções e o cérebro já não se importava com o próprio corpo, somente com o da mulher, mas nada disse.


- Ok. Vamos lá no meu quarto um pouco, depois a gente faz um brigadeiro, pode ser? Você gosta?

- Claro... Posso deixar a bolsa aqui?

- Sim, põe ai no sofá.



O quarto era uma cama de solteiro, um guarda-roupa velho de madeira, uma escrivaninha com alguns livros e um violão. Uma das quatro paredes, porém, era especial - nela haviam muitos pôsteres, bilhetes, frases rabiscadas e poesias. Rebecca parou por alguns instantes para observar, enquanto Cora se jogou na cama, abraçando o travesseiro e olhando para a menina com olhar de curiosidade.



- Isso é muito a sua cara. - a cobradora riu, enquanto os negros olhos se desviaram da parede para analisar o corpo deitado sobre a cama. - Eu adoro muito esse do Almeida Garret. - disse, apontando na parede - Os cinco sentidos.



Tirou os tênis e se sentou na cama junto à mulher. Entrelaçou os dedos no emaranhado de cabelos louros e se debruçou sobre ela, ao mesmo tempo que dizia:



- São belas - bem o sei, essas estrelas,

Mil cores divinais têm essas flores;

Mas eu não tenho, amor, olhos para elas:

Em toda a natureza

Não vejo outra beleza

Senão a ti - a ti!



Beijou-lhe o pescoço, sentindo com atenção todas as partes de seus corpos se tocarem. Cora acariciou seu rosto e, com a voz trêmula, continuou:



- Macia - deve a realva luzidia

Do leito - ser por certo em que me deito;

Mas quem, ao pé de ti, quem poderia

Sentir outras carícias

Tocar noutras delícias

Senão em ti - em ti!



Beijaram-se longamente, perdendo as mãos para dentro das blusas, a saia de Cora cada vez mais levantada. Os sons se perdendo ao ecoarem pelo quarto e fazendo toda a racionalidade de seus seres desaparecer, dando lugar apenas a um sentimento recíproco, que se confundia carnalmente com o amor, mas pouco importava pois nada havia, nenhum problema, senão o excesso de desejo amassado entre as duas. As roupas apenas atrapalhavam o tato e rapidamente foram descartadas.



Enquanto Rebecca sentia o gosto do corpo de Cora, ela apertava com força os lençóis, de olhos fechados e ofegante declamou, por fim:



- A ti! ai, a ti só os meus sentidos

Todos num confundidos,

Sentem, ouvem, respiram;

Em ti, por ti deliram.



Os cabelos vermelhos, que estavam numa bagunça incompreensível, se levantaram para encarar o par de olhos azuis. Com a respiração forte, as duas se olharam por um tempo incontável.



- Qual é o seu nome?


A cobradora riu e a beijou antes de responder ao pé do ouvido:


- Cora... Meu nome é Cora.



Rebecca escorregou as mãos pelas costas brancas de Cora. Cora... Fechou os olhos e enterrou todos os seus pensamentos e sentidos naquela pele lisa. Sorriu de leve, satisfeita, e por dentro algo incrível tomou conta de seu equilíbrio. Os olhos quase inundaram, contrapondo seu sorriso imenso, numa confusão de pele, mãos, dedos, pernas, braços, beijos, sons, sombras, céu, poesia e inferno. Soube, sem pensar duas vezes - Thom Yorke tinha razão,

(c)

terça-feira, 21 de julho de 2009

Dois e cinquenta - Décima terceira parte

cora não se cabia mais dentro de si mesma. os dias se arrastavam, feito um rio que corre e nunca desvia de seu curso. sua alma se agitava, em timbres desesperados. ver a menina, seus cabelos vermelhos que esvoaçavam enquanto andava, ir falar com seu amor de olhos orientais havia lhe matado. foi feito choque de dois mundos, que deveriam ser sempre inseparáveis. quiser ser ela como água, ele como óleo. sabia que isto era obra dela. uma provocação sutil, por aquela preça que o destino lhe pregara. o bilhete ir parar em mãos erradas - e não menos queridas - bastaria para que ela tornasse todas as suas concepções celestiais em inferno. via já os dois, juntos, a rir-se dela. e quando para que julgasse que eles a queriam - ou pelo menos seus olhos diziam isso - agora se desfaziam dela, se querendo a si próprios, e isso suprimia o desejo que tinham por ela. pois não era esse desejo, se mesmo existisse, apenas invencionice da cabeça ociosa? por que sentiriam tanto por ela? não tinha nada a oferecer, passava o dia sentada, contando dinheiro, distribuindo uns sorrisos falsos. era certo que era bonita, talvez fosse, os homens sempre disseram isso a ela, mas que beleza não é tudo. e o que tinha mais ela? a menina era estudada, sabia de muitas coisas do mundo, e ele! nem se fala. ele já trabalhava, entendia mais de poesia que ela - mesmo sem gostar (e isso doía ainda no seu ego); seriam perfeitamente um casal. um casal como quiseram os outros, todos os outros, o mundo lhes aprovaria. mas ela, com um ou outro, não cheiraria bem. sentia-se feito uma confusão, feito centelha de coisa errada, que desse a entrar na vida calma das pessoas. e assim, chorava, escondida, molhava o travesseiro, sentia as lágrimas chegando ao ver os dois subindo no ônibus. sentir-se o que atrapalha, como o que meio sendo bruxa de conto de fada, era muito para si. sempre foi tão estimada! agora era só escuro que se esmorecia. ah, mas não. não devia de ser assim. não podia ser assim!


aquela menina, de cabelos vermelhos, aquela menina é que mais se aconchegava na sua mente, ia recostando à sua alma, fazendo-se sentir em seu corpo. como que a gente preferisse pelo que há mais de errado: pois era menina, era mais nova, e era um inferno. provocava cora, fazia a sentir assim, trocada de papéis, inferno ela mesma, mas o diabo era aqueles cabelos vermelhos, aqueles olhos desejosos. ela não podia inverter assim os papéis! a verdade era que queria-a mais que nunca. como se querê-la bastasse para matá-la. bastasse para se reafirmar como coisa que vale muito, que vale ser amada. necessitava que a amassem. pensava muito em seu corpo delgado, tentava lembrar-se de seu cheiro, demorava-se em seus olhos. o sonho a consumia.


queria falar. ia falar. não ia deixar que a atração que ela exercia na menina morresse, e fosse debandar por outros cantos, principalmente aquele canto, aquele canto de olho puxado. e depois que matasse a sua sede dela, partiria para ele. sim. separados assim, daria um jeito de fazer os dois se odiarem. e ela não perderia nenhum. ela ia ter para si o que merecia. afinal, que Deus é esse que a bota como cobradora, como pobre, e não dá nem direito de amar? de amar, todas as criaturas tem poder. e de amar, dois, um, três, quanto lhe cabesse no coração. quanto lhe coubesse no desejo.



viu a menina, os cabelos vermelhos, a camiseta apertada. a curva da sua cintura, as pernas compridas que tinham um passo rápido e decidido. os cabelos, ai, cabelos, as curvas no alto, vermelhos, ai, vermelho feito desejo, feito o sangue que corria depressa na veia. veio vindo, como sempre. olhava com menos ardor para cora, agora. ela sentia. não tinha certeza mas sentia. passou pela catraca. atrás vinha muita gente, não podia lhe falar com aquela gente toda atrás.


- ei... espera um pouco, aqui? quero falar...

a menina espantou-se um pouco. não quis ver toda sua reação. tinha que receber dinheiro, liberar catraca para aquela gente, feito bois, rebanho, cheio de sono, cheio de tédio, cheio de ódio. as pessoas cada vez mais minavam sua coragem de falar aquelas besteiras à ela. tão bem ensaiadas. a última pessoa passou, tão desconhecida como todas as outras. rostos que não significavam nada. tinha medo de olhar para o rosto que significava-lhe tudo.

- bem... é que...


perdera o começo, perdera a fala. o coração bombeava, sentia as mãos suadas. a boca abriu, a fala não veio. não devia se mostrar tão nervosa. era uns cinco anos mais velha que ela, talvez menos, talvez mais. deveria ser adulta, deveria ser perversa. como ela fora. deveria falar.


- é que... já disse como você se parece com uma prima minha?


a menina sorriu. um sorriso doce. aquele sorriso tranquilizou, um pouco, seus batimentos, seu nervosismo, o estranhamento da própria voz.


- não, pareço como?

- não a aparência, claro. ela é negra, e é mais alta, talvez seja, e tem um cabelo todo louco, sabe? mas me parece em outra coisa.

- que coisa?

- não sei, acho que são os olhos.


os olhos da prima eram cheio de ternuras. o dela, eram inferalmente cheio de desejos. embora ternura e desejo sejam a mesma coisa, no fim. não era certo mentir assim, mas não conseguia dizer a verdade. lembrava a prima no que ela a fazia sentir.


- os olhos, como, de serem pretos?

- não, o jeito de olhar. e o meu jeito de retribuir.


corou-se toda. que ironia, cora corada. você que odiava esse nome! talvez fosse bem feito receber ele.


ela sorriu mais, se era possível. sorriu com os olhos, a boca, o nariz, o corpo todo. trazia certo triunfo nisto.


- olha... você quer me ver mais tarde? posso falar mais da minha prima.


riu, nervosa. pareceu boba, criança. tinha que contar suas verdadeiras intenções. seria agora, agora, já. e continuou em seguida:


- que besteira, não é? mas é que eu ando pensando muito em você... e rezado para que pensasse em mim também. se bem que Deus, se for como as pessoas dizem, não irá muito me ajudar neste caso, eu, você. mas bem, pode ser que tudo seja fruto da minha imaginação. pensar que você aceitasse, convite de cobradora, assim. que bobeira.


desta vez foi sua vez de sorrir, para descontrair. sentia as mãos molhadas, a vista até turva, de tão nervosa que estava. seu estômago se retorcia, dando nós em si mesmo, não aguentava mais assim sentir-se.
a menina abriu a boca para falar. não conseguia destinguir as reações dela, tal era a confusão que tinha dentro de si. antes de deixar ela falar, resolveu desembuchar, como com medo de sair não daquela boca tão bonita.


- olha, estou tão nervosa... pega nas minhas mãos, vê como estão suadas,





(m)

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Dois e cinquenta - Décima segunda parte

Miguel não tinha grandes sonhos ou ambições. Crescera sozinho, sendo chamado de nerd, por mais que tirasse notas medianas. Aliás, se tinha algo que o perseguia era a mediocridade. 
Tudo era pela metade na vida dele. Era meio alto e meio baixo. Olhos meio abertos e meio fechados. Meio português e meio japonês. Odiava até mesmo os médiuns, os queijos meia-cura, as pessoas mais ou menos, os dias meio chuvosos. Gostava do amor, isso sim gostava. 
Mas como já disse ele não costumava muito vê-lo por ai.
 Gostava também de quem transparecia esse sentimento, como aquele menina dos cabelos de fogo que olhava naquele dia olhava incessantemente para seus cabelos (os únicos inteiros nele, completamente lisos e sedosos). Mas ele novamente estava na metade. Não daria para ter os cabelos de fogo com o mar azul como no sonho da noite passada?



Eis o sonho:



Fitava com certo ardor e frio na barriga seu rio-lago-mar azul. E ela, junto com ele, mordia a mão em pensamento. Como se conversassem por telepatia, transmissão de pensamento. 
Enquanto isso sua menina-fogo recitava incessantemente poemas de Fernando Pessoa. Ambas vinham em sua direção naquele corredor de ônibus. Agora eram as duas com sutiã de renda preta,como o do sonho passado. Tão próximas era possível sentir o cheiro de libido que exalava daqueles corpos.


O Fogo agora escrevia doces palavras no corpo do Mar, descobrindo pernas, braços, seios, colo e soltando palavras em sua boca, que depois partia em busca de descobertas no nosso japonêsportuguês, chegando a lugares já esquecidos à algum tempo.


Nunca, em lugar algum, se vira tanto deseja e a combinação Fogo e Mar nunca fora tão perfeita e completa. Nenhum tornava o outro impotente, mas se fortificavam. Deixavam de ser meio e passavam ao inteiro que inteiramente se entregava à Miguel. 



Agora, acordado, na mesma poltrona que sacoleja, ele via Fogo e Mar. Se afogava e ardia.

 Sentia-se queimar aos poucos. A roda de fogo se fechava. 
Já falara certa vez sobre poesias com Mar. E agora se cedia a tal com Fogo.
 Os cabelos escorriam pelo seus ombros como se fossem sangue e seus lábios acompanhavam perfeitamente seu tom. Os seus olhos ele sabia serem da mesma cobradora dona dos seus. Mas pouco importava.



Mas voltando aos poemas, com ela conversara sobre outros, afinal, vai saber se elas não se comunicariam por pensamento ,assim como ele com a sua cobradora em seu sonho.
 Mas também não se lembra de muitas palavras e o barulho da cidade era ensurdecedor aquele dia. Se lembra muito bem somente daquele barulho, parecido com o de fogueira....saia do coração daquela menina.



¹A maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a dor do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana.


A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo,
o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro.



O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e ferir-se,
 o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. 

Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes de emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto de sua fria e desolada torre.




Ele renascia para o amor do doloroso encontro do fogo e da água. O ardor e o frescor,

¹ Vinicius de Moraes

(e)

domingo, 5 de julho de 2009

Dois e cinquenta - Décima primeira parte

Rebecca lembrava-se com nitidez das palavras que rabiscara para a moça enquanto subia no ônibus naquele dia ensolarado:

¹O Mundo não se fez para pensarmos nele

(Pensar é estar doente dos olhos)

Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo.
Eu não tenho filosofia; tenho sentidos...

Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,

Mas porque a amo, e amo-a por isso

Porque quem ama nunca sabe o que ama

Nem sabe por que ama, nem o que é amar.

As palavras repercutiam em sua cabeça como se estivessem escritas nas rodas dos carros, bem em frente aos olhos - nas placas, no Sol que nascia calmamente esticando seus raios pelas frestas da cidade, nas pessoas que corriam apressadas. Mas porque a amo, e amo-a por isso. As palavras do poema passavam diante de seus olhos arrastadas pelo vento e se enroscavam em seus cabelos vermelhos, davam aos ouvidos um outro tom. Nem o que é amar. Todas as notas, estranhamente, estavam uma oitava acima para Rebecca.

O homem oriental encontrava-se exatamente à sua frente enquanto caminhavam em direção ao centro do ônibus. Ela sabia que para ele, tanto quanto para si mesma, aquele centro significava muito mais do que uma simples catraca. Observando-o, de costas, sentiu um certo apego pelo sentimento compartilhado dos dois. Talvez ambos sofressem pelas mesmas longas horas, talvez ele sentisse, também, aquele frio e medo da impossibilidade de um amor tão imenso - uma dor quase física. Os cabelos dele atraíram a menina por alguns segundos - lisos, macios, mal cortados e um pouco grandes demais. Pegou-se pensando em sentir sua maciez nas mãos. Estranhou o sentimento repentino, mas esqueceu-se de olhar para Cora por algum tempo. Em vez disso, observou aquele corpo bem vestido à sua frente. Enfiado naquele terno tradicional, de corte perfeito, costura finíssima, encontrava-se um homem bonito. Há tempos Rebecca não prestava atenção em um homem. Ele estava com um All Star de couro preto naquele dia. Ela se sentiu em casa por este fato. As mãos dele eram lindas. Se havia uma coisa que a menina reparava nos homens eram as mãos e as de Miguel eram perfeitas - grandes, muito masculinas, com calos e as unhas mal cortadas. Se distraiu quando as mãos que tanto olhava deixaram o ferro do banco em que se seguravam para entregar uma nota azul para Cora. Viu, com apertos descompassados no coração, os dois trocando olhares, moedas, notas e um bilhete amassado.

Ficou olhando para a cobradora enquanto ele ia se sentar. Eu te fiz um bilhete, não ele. Franziu o cenho e quis dar-lhe uma bronca, mas Cora desviou o olhar. Com raiva, fingiu não se importar. Passou os olhos pelo ônibus a procura de Miguel. Ele estava sentado, com suas mãos de homem tão atraentes em um banco de duas pessoas, sozinho, na janela, no fundo do ônibus. Fingia se concentrar em um livro, mas olhava para a mulher com frequencia. Rebecca riu. O que é que essa mulher tem, meu Deus?

Não teve dúvida - sentou do lado dele e disse, contente:
- Oi, meu nome é Rebecca.

Ele virou a cabeça devagar e disse um oi estranho, como se dissesse: Por que raios você está falando comigo? Mas a menina não parou, quis interessá-lo, distrai-lo. Internamente pensava: vem comigo, vamos nos esquecer dela. ²Who needs love at all? Nestes 40 minutos, Rebecca se surpreendeu com sua própria capacidade de ser sociável. Conseguiu arrancar dele alguns sorrisos que pareceram muito sinceros. Disse tchau com um beijo no rosto e sentiu de perto o cheiro dos negros cabelos lisos.

Ao encontrar Gabriel na escola, o beijou com gosto e o convidou para ir até a sua casa à tarde. Ele pareceu surpreso, mas, obviamente aceitou o convite. Depois, passou a aula toda balançando as pernas, apertando o botãozinho da caneta, sem prestar atenção em nada. Rebecca só achava engraçado. Esses meninos... No intervalo, ele não deu atenção ao grupo de meninas exibidas e efusivas que se fez em volta dele. Elas falavam muito e ele respondia monossilabicamente. Desviava o olhar delas se jogando em cima dele para olhar Rebecca, sempre. Ela, só achava engaçado. Quando a aula acabou, ele parecia prestes a explodir. Os dois deram as mãos e não se falaram, o silêncio pairava de forma incômoda para ele, engraçada para ela. Ela ria do silêncio e do nervosismo. O que a fazia nervosa estava longe dali, ela nem sabia onde e não se importava porque não era de manhã. Enquanto caminhavam para casa em silêncio, ela só pensava na cobradora e em suas carnes sobressalentes tão dignas de admiração. Minto, ela pensava também em Miguel e no notório impressionante volume em suas calças sociais. Precisava tanto descarregar essas forças que sentia tão intensamente... Precisava muito, queria gritar e sentir na pele o prazer que sentia em segredo na alma.

Quando entraram no quarto, ela o beijou ao mesmo tempo que deixou aos mãos explorarem locais desconhecidos do corpo dele. Gabriel estava paralisado, os músculos do corpo todo tão duros quanto seu pênis. Ela desabotoou as calças dele e o empurrou em cima da cama. Tirou a camiseta enquanto o moleque a olhava, com os olhos arregalados.

- Lembra que eu disse que faríamos quando eu estivesse pronta?
- Ahn... É... Aham. Lembro, lembro.
- Eu estou pronta.

Ela se deitou em cima do menino e fechou os olhos. Gabriel foi se acalmando, aos poucos. Apertou os cabelos dele nas mãos sentindo a maciez dos de Miguel e viu o céu e o mar, misturados loucamente num azul maravilhoso, presos dentro de olhos orientais. Gritou o mais alto que pôde. Sentia-se dentro da história. Sentia a história dentro dela. De olhos fechados, Rebecca pôde ver tudo o que quis,

¹ Alberto Caeiro - O Guardador de Rebanhos

² Amanda Palmer - Leeds United

(c)

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Dois e cinquenta - Décima parte

Sonhei, confuso, e o sono foi disperso,

Mas, quando dispertei da confusão,

Vi que esta vida aqui e este universo

Não são mais claros do que os sonhos são. 
Fernando Pessoa



acordou no meio da noite, os cabelos colados à cara de tanto suor que cobria seu rosto. o quarto estava abafado e demasiado escuro. seu peito ainda subia e descia em descompassado desespero. acendeu a luminária. cora raramente sonhava. seus dias eram tão cansativos, que bastava esticar-se na cama para dormir a noite inteira sem nenhum sonho invasor lhe pertubar. mas os seus sentimentos caminhavam por linhas tortas que nem ela conseguia entender, o suficiente para que abrisse inconscientemente as portas de sua mente tranquila.


sonhara que estava em uma poltrona aveludada vermelha, e que à sua frente aquele oriental a lambia. enquanto beijava todas as partes do seu corpo com violência, ia dando aos seus dedos notas amassadas e moedas de cinquenta centavos que caíam a todo instante, irritando-a. mesmo que isso a constrangisse, não conseguia impedir que suas mãos buscassem aquelas notas azuis, como se fosse corriqueiro demais para parar. ele abriu o zíper da sua calça, e a pressionou contra a poltrona. cora se sentiu afundada, feito uma folha fina de papel. fechou os olhos e esperou seu delírio. não viera. viu que o corpo branco e magro dele se movia incessantemente, ouvia sua respiração rápida e seus gemidos baixos. não entendia.


- eu não sinto nada.


ele, sem ao menos olhá-la, lhe deu outra nota acompanhada com a maldita moeda, que escorregou e tintilou no chão. o barulho de uma só moeda poderia ser de milhões. cora o empurrou, já chorosa, e correu pelada para a saída, uma saída escura em meio à parede branca. viu lá a menina de cabelos vermelhos e sua prima.


- eu odeio essas moedas.

sua prima riu alto.

- eu sei do que você gosta, nenê.

em seguida, cora se afogava com duas meninas que tocavam sua pele, lambiam sua orelha, beijavam sua boca. se sentia sufocada, e pedia para que elas saíssem de cima, mas parecia que ninguém a ouvia. abriu a boca em um grito de socorro, mas não ouviu sua voz ecoar. a última imagem que se lembrava, antes de abrir os olhos, foi de alguns cabelos vermelho sangue que invadiam sua boca, e enroscavam-se nas suas cordas vocais.



agora, sentada em segurança na sua cama, tentava acalmar seu coração. dizia para si baixinho, como sua mãe costumava fazer quando era criança: foi só um sonho, cora, foi só um sonho. sentou, abraçando seus joelhos. viu que não mais conseguiria dormir, por isso achou melhor dobrar seu uniforme, pois o deixara jogado no começo da noite. junto à blusa branca, distinguia uma linha vermelha. a pegou, curiosa. era um fio de cabelo. levou as mãos ao pescoço, como se seu sonho pudesse invadir a linha da realidade. sentou-se na cama. seu coração agitava-se novamente. por que sentia tanto medo? era só um fio de cabelo. abriu a boca e fez força para que sua voz saísse. sim, obrigada. lembrou-se repetinamente do bilhete que ela havia entregado. desamassou-o e olhou aquela letra bonita, um pouco torta, desenhada no papel. talvez aquela menina gostasse mesmo dela. teve já parceiros, mas poucos gostaram dela de verdade. todos queriam sexo e um pouco mais depois. mas o pouco mais era sempre muito pouco. e seus parceiros eram sempre da mesma linha, gente mesquinha, trabalhadora, que se cansava todos os dias, e que só queria descansar o corpo noutro tão cansado quanto o próprio. eles nunca entendiam suas rimas, e depois de algum tempo, pediam para que ela se calasse apenas. talvez era por isso que seus olhos se engradeciam até por uma estudante, assombrada pelo fantasma de sua prima, ou um rapaz que não tivesse que se cansar. que andava de ônibus porque queria. o poder de escolha, destas duas pessoas, a fascinava. o poder de escolha, que nunca pôde ter. e talvez por isso, tanto uma quanto outro, lhe arrancavam os mais nobres sentimentos descritos por todos os poetas do mundo. ficou acordada até a hora de ir trabalhar, dando-se o luxo de tomar um banho demorado, lavar seus cabelos e preparar-se para a batalha de sua alma insaciável. arrancou uma folha de seu caderno e copiou:




¹Se eu te pudesse dizer

O que nunca te direi,

Tu terias que entender

Aquilo que nem eu sei.


dobrou-o. escreveu na frente, depois de diversas tentativas "para seus olhos que me fitam (e que me encantam)". sorriu, satisfeita consigo mesma.



estavam os dois, no mesmo ponto. o rapaz mal-humorado fitava o mundo através de seus olhos puxados. a menina, que estava também mal-humorada, pareceu que sorriu ao ver o ônibus se aproximar. cora retribuiu um sorriso tímido, mesmo sabendo que ela não poderia vê-lo. segurou nos seus dedos o papel, já amassado. achava que o entregaria todo molhado, pois transpirava de nervoso. ensaiara mil vezes entregar o papel para ela, desde a manhã.
vinha em direção à catraca, primeiramente, o homem oriental. vinha, como sempre, um pouco cabisbaixo e inseguro. ao entregar seu dinheiro contado, a olhara. cora não esperava esse olhar. pegou o dinheiro, um pouco desastrada, e ao fazê-lo, deixou cair o papel que segurava. seu coração agitou-se feito louco dentro do peito, como se ele mesmo fosse capaz de parar o papel no meio do ar e desfazer o momento desastroso. ele se abaixou para pegar o papel. lia-se naquela letra pequena e mal-feita,
para seus olhos que me fitam 
(e que me encatam)
 segurou, confiante, e sorriu para ela. cora viu em seus olhos tamanho júbilo, como se refletido neles encontrava-se o paraíso, que não pôde falar mais nada, além de sorrir, ruborizada.


quando a menina passou pela catraca, cora tentou parecer que se concentrava em alguma coisa muito interessante lá fora, no céu azul, porém recheado de nuvens cinzas de maus presságios,



¹ das quadras populares portuguesas, Fernando Pessoa.

(m)

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Dois e cinquenta - Nona parte

Ela caminhava lentamente pelo corredor daquele ônibus. Era possível admirar, através de seu uniforme branco e velho, os desenhos formados pelos detalhes em renda de seu sutiã negro. Incrivelmente delicado; quase uma ninfa.


Caminhava com as pernas um pouco torcidas, assim como os olhos de Miguel.
 Era a timidez, que a deixava ainda mais encantadora.
 Chegou até Miguel e começou a falar tantas coisas, mas nada pôde ouvir. Naquele momento estava muito ocupado em reparar suas curvas, seus olhos e seus seios, enormes e roliços.
 
Aos poucos passou a compreender algumas palavras e quando deu por si estavam abraçados, deitados do chão frio com cheiro de moedas caídas. Ele, ela e seu sutiã negro de rendas (certo que perecia os de sua avó, mas nela tudo fica belo). 
Disse-lhe então ao pé do ouvido, com a voz um pouco trêmula e os olhos azuis escondidos por detrás das pálpebras:



-Você se contenta em me ver?


- A mim este Sol, estes prados, estas flores.

Contentam-me.

Mas, se acaso me descontentam,

O que quero é um sol mais sol 
que o Sol,

O que quero é prados mais prados 
que estes prados,

O que quero é flores mais flores 
que estas flores

- 
Tudo mais ideal do que é do mesmo modo e da mesma maneira!



E então ela beijou nosso japonês e fizeram amor durante horas e horas. Seu corpo sobre o dele, se uniam agora em um só. Sentia sua respiração, seu tremor, a batida de seu coração.

Tuntun, tuntun, tuntun.



Acordou.



Correu até o banheiro pra se banhar. Tomou seu café amargo ainda pensando no mar (ou lagoa, como já disse) azul.
 Correu para o ponto, já havia se entregado a vida de operário e pegava o ônibus religiosamente, todos os dias. Subiu envergonhado, como se a cobradora pudesse ver em seus olhos todo seu ardor masculino, então olhou fixamente pro chão.



-Tome seus dois e cinqüenta - disse em tom rude.



Ela admirou-se com tamanha rispidez e pegou o dinheiro, sem pronunciar uma só palavra.


Depois de meia dúzia de mordidas na mão (mania já citada anteriormente) resolveu olhar para sua musa, a cobradora. Virou-se decidido a convidá-la pra sair, foi quando ouviu sons saídos de sua boca para uma ruivinha sem graça e sem jeito sentada em sua frente.



Deja vu.

Ela roubara-lhe o sonho,



(e)

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Dois e cinquenta - Oitava parte

Era só mais um dia entre tantos, misturado num emaranhado de dias flutuantes que seguiam sem deixar explicação. Do lado de fora da janela, a segunda-feira começava a acordar, espreguiçando-se devagar, com a pressa de quem ainda tem a eternidade pela frente. Como de praxe, Cora veio visitar Rebecca nos sonhos. Diferente, desta vez, porém - não foram sonhos perturbadores da madrugada, que deixavam de lembrança dias atormentados e nuvens cinzentas; foi um sonho de manhã. Um sonho bom, matinal, que deixou um gosto muito mais característico na boca pelo dia afora: um gosto azul-bebê, uma cor tão Cora, tão doce, tão deliciosamente sinestésica. Se Rebecca soubesse o nome da cobradora, certamente haveria multiplicado as inúmeras associações que ligavam aqueles claros cabelos com o belo sonho. Naquele amanhecer, tudo era luz, tudo era um pingo de felicidade, que tomou conta, de repente, do mar revolto que eram os pensamentos da adolescente.



Tomou um café da manhã reforçado, como quase nunca fazia. Estava disposta, diferente. Estava de saída, mas chamou-lhe a atenção uma folha muito bonita entre os materiais escolares, em cima da escrivaninha no quarto. Era uma folha que ela nunca havia visto antes. Era o destino, que brincava com ela. A folha estava ali, a atiçar a menina, a colocá-la em prova. Uma lindíssima folha azul-bebê, surgida do nada, em cima da escrivaninha,naquele dia. Apanhou a atrevida folha, dobrou e a enfiou no bolso, sem cuidado.



- Mãe, tô indo, viu? Fica com Deus.

- Que sorriso é esse, viu o passarinho verde, foi? - a menina riu, sem graça - E, por um acaso o nome dele é Gabriel, é? - a mãe a abraçou, com ternura. Por um instante, Rebecca congelou. Sentindo o corpo rechonchudo da mãe a envolvendo, desfez o sorriso e deixou fugir uma parcela do encanto da manhã.

"Eu sou a prosopopéia do pecado, não há dúvida." - pensou. Ela nem lembrava-se do nome do garoto, na maioria dos dias. Esforçou-se ao máximo para recuperar o sorriso e mantê-lo intacto para responder "Claro, né, Dona Paula?", mas aquele sorriso não era nem um pouco dele. Um pecado que não podia conter. O sorriso tinha outro nome, um nome que ela nem sequer sabia qual era. Mas tirando este detalhe, sabia de cor todos os outros que pôde decorar com os olhos. Um pecado incontrolável.



Saiu de casa tentando afastar a cruel escuridão da dúvida e fazer-se luz, por só mais um momento. Eram raros os momentos em que fosse luz. Desde o fatídico dia em que acordara mais cedo e encontrara Cora, então, menos. Tornava-se cada vez mais desbotada. Corrompida por um desejo proibido que a consumia. Por vezes, ela até queria ser luz outra vez, mas quase sempre gostava daquela escuridão, de ter se tornado pecadora e quieta. Esconder de si mesma não adiantava mais, ela queria de verdade ser aquilo, ter aquilo. E ela sabia, no fundo, sempre soube. No meio das trevas que criara para se esconder do mundo, havia encontrado um pedaço da sua paz, ainda que apenas em pensamento.



No ônibus, não evitou olhar a moça aquele dia. Ela estava tão bonita quanto em seu sonho. Em todos os detalhes. A pele branca que saia do uniforme, displicente; os cabelos mal presos, loiros, bagunçados com o vento da janela aberta; os olhos, ah, os olhos; as pernas cruzadas e... tudo. Tudo nela era tão encantador quanto o que todos sabiam reparar. Rebecca ia além, reparava em cadadetalhe e ficava tonta, só de olhar. Era muito para os olhos, e não só para os olhos porque aquela imagem a invadia através dos olhos e alcançava a alma, com toda a força. Agarrava-se nas entranhas e permanecia.



Talvez porque a estivesse encarando com olhares famintos, mas Cora a olhou de volta. Todos os olhares daquele azul não eram passíveis de interpretações lógicas. Era isso o que os deixavam mais interessantes? Mais loucos? Era isso o que a enlouquecia? Ah, certamente que era. Quando achou que não caberia mais falta de discernimento em seu ser, Cora dirigiu-lhe a palavra:



- Mas, se acaso me descontentam,

o que quero é um sol mais sol que o Sol,

o que quero é prados mais prados que estes prados,

o que quero é flores mais estas flores que estas flores. Pode passar.



Sentiu-se desmoronar. Não agiu. Não passou a catraca. Em vez disso, desviou o olhar: APROXIME O CARTÃO. Passado o choque inicial, finalmente ela pôde obedecer a frase. Aproximou seu cartão escolar, passou e sentou-se no lugar exatamente em frente à cobradora. Apoiou os pés na cadeira dela. As duas cruzaram o olhar por um segundo meio eterno, sem nem conseguir pensar em nada, debaixo dos cabelos vermelhos encontraram-se todas as declarações de amor do mundo naquele instante. Até que Rebecca abriu a bolsa, pegou uma caneta, tirou um papel amassado do bolso do jeans e rabiscou uma frase.



Ficou ali, alternando olhares para a frase que escrevera e a mulher para quem escrevera a frase. Esperou chegar muito perto do ponto em que tinha que descer para se levantar. Colocou o papel dobrado e mais amassado ainda que antes em cima do caixa, esperou apenas o tempo necessário para que Cora encostasse em sua mão. Então, olhou com carinho para as mãos, encostadas, soltou o papel junto às notas e disse:



- Eu não sei o seu nome.



Deu o sinal e saiu, antes que ela pudesse responder,



(c)

domingo, 21 de junho de 2009

Dois e cinquenta - Sétima parte

cora, ao chegar em casa depois de um longo dia de reviravoltas em sua alma, queria apenas desmaiar. ainda assim, preparou o jantar e ouviu seu pai reclamar do parco salário que eles ganhavam. todos os dias ele reclamava, e dizia que não acreditava ter sua filha no mesmo patamar social que ele tentou fugir por toda sua vida. eles deveriam pensar em enriquecer, em mudar de vida, pois aquilo era uma desgraça.


- mas foi você que me arranjou o emprego. e foi aí que eu desisti de estudar.

- e eu sempre te disse que estudar não é o caminho certo, cora.


já não discutia. a sua contestação ficara perdida nas noites que passou chorando o futuro que haviam lhe desenhado. já não esperava nada, apenas esperava esperar suas paixões ultrapassarem catracas e adentrarem em seu mundo adornado. e suas paixões impulsionavam sua alma confusa e estrábica, um pouco torta e sem cor, mas sabia que tudo se explicava por todos os sorrisos, por todos os olhares. e aqueles olhares que estremeciam seu coração, acaloravam seu dia deixavam-na insana por dentro. e não era apenas aquele homem de olhos orientais, que muito a assustava, com toda sua pompa a destrambelhar pelo transporte público. era, também, aquela menina, que suscitava tais lembranças apimentadas, que queimavam sua garganta, enquanto a deliciavam. 
lavava calmamente a louça do jantar, brincava com a espuma pelos pratos sujos, lembrava-se das cócegas na sua pele. sentia a água gelada que desabrochava da pia, e a espirrava fazendo-se rir sozinha. que besteira, cora, você está se metendo em confusão. sim, estava, mas já não tinha tanta preocupação. queria percorrer caminhos nunca dantes vistos, escorregar por mundos que a fizessem sentir um pouco mais diferente. que a fizessem um pouco mais feliz, completa, irrigada. queria viver o que as linhas sonhadoras de seus poemas lhe sussurravam todos os dias, e já não achava erro ter direito à sentir isso. não era privilégio de ninguém, era apenas de quem se aventurasse. não sabia quem é que se encaixaria perfeitamente com sua alma cheia de vontades, mas não ligava. simplesmente lhe apetecia a idéia de ter entre os dedos cabelos vermelhos e dentro dos olhos outros mais puxados. era, sim, absurda, hiperbólica, colérica. queria tanto gritar, para afastar todos os pensamentos mesquinhos que insistiam em puxá-la para baixo e recuar pelos caminhos: ¹pouco me importa/ pouco me importa o que? não sei: pouco me importa.


fez silêncio para ver se dento de si mesma resurgiam as vozes desanimadas, como patos soluçando, mas parecia que tinham desistido. ouviu os roncos distantes do seu pai. caminhou na ponta do pé, pegou seu velho livro de alberto caeiro e sorriu.




no dia seguinte, quando viu aquele emaranhado vermelho-morto se aproximar, e tais olhos pretos que já a observam, disse-lhe na ponta da língua:


- ²mas, se acaso me descontentam,

o que quero é um sol mais sol que o Sol,

o que quero é prados mais prados que estes prados,

o que quero é flores mais estas flores que estas flores. pode passar.


cora decidira-se por viver, pois sonhar não cabia mais na sua alma, que tinha se tornado grande, tão grande que nem ela imaginava,






¹ pouco me importa - alberto caeiro.
² ah! querem uma luz - alberto caeiro

(m)

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Dois e cinquenta - Sexta parte

Com o carro ainda na oficina Miguel levantou decidido em pegar o ônibus, aquele inundado pelo mar azul. No fundo sabia que existiam outras formas para se locomover, como o táxi, que dessa vez poderia aceitar parar ao ver o novo brilho que mora em seu olho pequenino de japonês. Mas não. Ele não quer e mesmo assim insiste em afirmar pro seu coração que só vai até aquele ponto de ônibus por economia ou para experimentar algo novo. Pobre coitado, não percebe que o que o atrai até aquele ponto de ônibus são sim aqueles olhos escondidos por detrás da catraca. Tão diferentes do seu; tão expressivos. Tão infantis. Sim, por que da última vez notara que pareciam de uma criança - a cobradora parecia alguns tantos anos mais nova que nosso japonêsbrasileiroportuguês. Mas isso pouco importava naquele momento.



Subiu as escadas como quem sobe uma montanha, com muito cuidado dessa vez para que não chama-se atenção pelo seu destrambelhamento, como da última vez. Com o dinheiro contado (dessa vez em nota e moeda, como que para esbanjar dinheiro) entregou para a cobradora, esperando por um sorriso. Em vão. Ela também parecia esperar por algo, mas se intimidou ao vê-lo tão chique em seu terno e recuou tapando os grandes dentes com os lábios vermelhos.



Sentou-se, novamente em cadeira única, pegou um maço de papéis querendo se esconder e fingiu lê-los. Mas seu pensamento permanecia na sua menina azul.



Escondido entre o estofado e o vidro segurou firme um de seus pulsos e pôs a mão fechada dentra da boca, mordendo fortemente. Tomara isso como mania ainda criança. Quando seu pai morrera se lembra de sua mãe batendo em sua mão fazendo com que ele parasse. As pessoas não entendiam que esse era seu choro, seu grito, seu desespero.



Depois de deixar algumas marcas dentárias retirou a mão,aliviado.



De repente surge diante seus olhos, que evitarei caracterizar aqui de novo sabendo que já podem imaginar sua principal característica, aquelas duas lagoinhas azuis (ora mar,ora lagoa). Trocou algumas palavras; não pôde decorá-las bem. Estava muito ocupado em manter sua pose de dono de grife em shopping. E jamais poderia se deixar levar por aquele sentimento, afinal, ela era bem mais nova e uma funcionária, operária como outra qualquer. Mais um número no centro.



Mas Miguel não podia evitar tudo e nem tudo sumia junto à mordida de sua mão. Ela gostava de poesia e isso o fascinava. Não conhecia muito bem, mas se lembrava de algumas do Pessoa. Justo o que ela citou,

(e)

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Dois e cinquenta - Quinta parte

Dormiu muito mal, amassou os lençóis, revirou-se na cama a noite toda. Quando cochilava, via cenas terríveis daquele homem dos cabelos negros e escorridos invadindo a boca de Cora com a língua e a escorregando com malícia masculina por toda a extensão corpo branco da moça.



Quando se levantou, Rebecca estava decidida a se atrasar. Sentia uma raiva imensa, não precisava pegar aquele ônibus inútil. Ignorava o frio na barriga que sentia. Repetia inúmeras vezes em voz baixa que não haviam razões pra sofrer com isso com a finalidade de se convencer. Encarou seu próprio rosto no espelho sem gosto. Penteou os cabelos mal pintados e observou as olheiras profundas. Desejava ser um pouco mais céu e um pouco menos inferno, pra estar num meio termo. Mas era toda inferno. Dentro de seus próprios olhos enxergava o inferno que havia, um inferno de desejo puro e reprimido. Hoje, mais que o ardor do desejo, a queimava o fogo da raiva. Fosse quem fosse, nenhum homem desejaria a cobradora mais que ela. Nenhum!



Vestiu-se com uma roupa qualquer e saiu. Não se atrasou. Tentou diminuir a velocidade dos passos para perder o ônibus, mas ela não pôde. Precisava ver a cobradora e seus cabelos claros. Quando o avistou no fim da rua, seu coração deu um salto maior do que o de costume. Deu o sinal, sentindo-se derrotada e fraca. Subiu e foi logo passar da catraca para acabar com o sofrimento de vez. Olhando para baixo, pôs a mão no bolso para pegar o passe escolar. Não estava. Na bolsa, não estava. Não estava em lugar nenhum, aquela merda. Procurava freneticamente.



- Perdeu o passe?



Rebecca respondeu que sim, sem desviar os olhos da bolsa.



- Hey... Hey! Tudo bem... - Não parava de revirar os pertences de dentro da bolsa.
- Tudo bem! - Cora esticou o braço e a tocou. Tocou o ombro de Rebecca com aquela mão pequena, onde cabia tanto delírio. A menina ficou paralisada por alguns instantes e levantou a cabeça vagarosamente para encarar a mulher. Nunca a havia visto de tão perto. Sentiu o corpo esquentar, ruborizar a face, queria explodir. Segurou-se com toda a força que tinha para não se jogar em cima dela e beijá-la ali mesmo. Como desejou tê-la naquele momento, despi-la e possuí-la, ali mesmo, naquele banco encardido. Sentiu ânsia de si mesma, estonteantemente misturada à intensa vontade de enlouquecer.



- Pode passar - sorriu com um sorriso diferente que Rebecca não soube interpretar. Não era um sorriso daqueles simpáticos de sempre, isso não era. Colocou a mão sobre a de Cora e a tirou de seu ombro, embaraçosamente excitada. Passou de uma vez e sentou-se um pouco mais longe nesse dia.



Não colocou o mp3, não observou o mundo do lado de fora. Tampouco observou Cora e seu comportamento formal com os homens e mulheres sujas do transporte público. Gravou na mente aquele sorriso e tentou decifrá-lo o dia todo.



Toda vez que pensava no assunto, junto à ânsia, uniam-se sensações das mais diversas, as pernas ficavam bambas e ela precisava fechar os olhos um pouco, pra passar,

(c)

Dois e cinquenta - Quarta parte

cora observou com seus olhos inquisidores, um mar revolto de sensações inexprimíveis, o homem sentar-se desajeitado, sozinho. gostaria de que pudessem lhe escrever um poema deste sentimento que parecia só ter despertado em seu peito. lembrou-se de romeu e julieta, aquele filme tão bonito que passou na televisão. se tudo assim fosse tão bonito, não iria complicar o fato dela ser uma trabalhadora, operária, servidora, cobradora. de ela parecer tão feia e mesquinha dentro de seu uniforme sem graça, de ter cheiro de pobre. tudo seria tão somente poesia. e poesia não escolhe cor, nem credo, nem classe. não, senhor. abaixou os olhos, sentindo-se pequena demais. sentiu vergonha de ter sentido tal coisa tão nobre que não pertencia aos direitos da sua alma pequenina.



logo á frente dele, havia uma menina, sempre aquela mesma menina, que parecia ter um olhar tão revolto quanto fora o seu, minutos atrás. o cabelo dela tinha uma cor alucinante, ah sim, sabia que aquilo seria alucinante, aquele vermelho que não era vivo, mas apenas brincava de morto. como se inventando a morte nos fios de cabelo, poderia se passar como despercebida, silenciosa, acolorida. e como uma cobra, dar o bote que ninguém esperava.



aquela perseguição do olhar da menina de cabelo de fogo morto, todos os dias, que deveria ser só de estudante mal-humorada, fazia-a lembrar da sua prima. odiava-a por ter que resgatar aquelas lembranças. era negra e tinha caracóis no alto do cabeça, e olhos castanhos envoltos de ternura. ia muito lá, quando mais nova, e a prima, mais velha, brincava de ser cabelereira. o toque dos seus dedos, leves e levianos, pelo seus cabelos, percorriam sua nuca e brincavam com a orelha pequenina. depois, iam tomar banho juntas, embora já tivesse idade suficiente para se cuidar sozinha, a menina gostava de ensaboá-la. a sua mão percorria lentamente a barriga lisa, dava voltas infinitas no peito pequeno, que ainda se despontava. descia da nuca até os calcanhares tão carinhosamente que parecia tocar uma harpa. dedilhava as pernas, deixando seu rastro de espuma, sempre de olhos fechados e a boca, uma linha torta e esprimida. depois de a secar, parte a parte, colocava um vestido nela e iam dormir. a menina a abraçava na cama de solteiro, e até hoje podia se lembar do seu cheiro de sabonete de erva doce. fazia-lhe carícias bobas e maternais até que alguém ia buscá-la. cora sentia vergonha, e agora, mesmo sentada no ônibus, tinha vontade de chorar, pois seus pelos eriçavam-se e se sentia toda quente. quando chegava em casa, tinha ânsias sem fim, culpada sem saber o crime, chorava baixinho, mas nunca se privava de ir visitá-la. o fim da história que se desenrolava em um colapso, foi quando sua prima tocara os lábios dela nos seus, a lambeu e disse que a amava, e que queria muito que ali ficasse para sempre, do lado, dentro, parte do seu corpo moreno. lembrava como se fosse ontem, seu desespero por sentir êxtase, a culpa que se inflamava por todos os poros, as lágrimas quentes que escorriam por seu rosto; e as mãos da mulher que percorriam todo seu corpo, a voz doce que lhe jurava um amor eterno e livre. depois disso, disse ao pai, pois naquela época sua mãe já morrera, que nunca mais queria voltar na casa de sua prima, que prefereria ficar sozinha. e agora, com os olhos prestes a se derramar, olhou com desgosto a menina, e queria que ela desviasse aquele olhar, aquele olhar de desejo íntimo, e que a transtornava tanto mais que mil homens velhos que a queriam descarademente.



suspirou ao ver que ela descia no seu ponto. o rapaz que a tinha deixado toda gelada e petrificada, ainda olhava para fora, ou não olhava, parecia querer inexistir naquele ambiente. sabia que ele nunca mais voltaria para aquele ônibus. sabia que ele odiaria toda aquela corja de gente junta, se espremendo, fungando, correndo, morrendo. e como ele não a olhava, por nada deste mundo, e como se sentia enojada e terrivelmente minúscula por não ter despertado nem desejo carnal nele, resolvera que lhe falaria. não sabia o quê, mas falaria. precisava lhe falar, seu coração corria atropelado, e já sentia as mãos suando, e via minguando alguma possibilidade de despertar nele, o que nela ocorreu. esperou o ônibus brecar, parar, e se levantou sem passos tímidos.


- é o ponto final, moço.


ele simplesmente a olhou. continuou na sua frente.


- shopping?

- é. osenhorgostadepoesia?

- oi?

- poesia. eu adoro poesia.


ouviu sua risada sem entender.

- não, eu matava aula de literatura. você gosta mesmo?

- eu gosto. muito. - e acrescentou, pois parecia vaga e boba - gosto de alberto caiero. e fernando pessoa. e de vi...

- são a mesma pessoa.

- como?

- isso eu lembro; o fernando pessoa se fingia desse outro, e mais três até.


cora sentiu-se deslocada. nunca deveria ter ido lhe falar, falar ainda desta coisa boba, que é esse gostar sem motivo de ler poesia, e ainda ter de aguentar tal superioridade, só por estar enfiada naquele uniforme.


- eles são bem diferentes, senhor.

- devem ser. os escritores são pessoas meio malucas... menina.

- flora. meu nome é flora, senhor,

(m)

sábado, 6 de junho de 2009

Dois e cinquenta - Terceira parte

Apesar de pequenos e exprimidos, os olhos de Miguel sabiam expressar bem sua crise existencial. Como pode um brasileiro, de olhos exprimidos japoneses e nome português? Bom, mas isto talvez fosse essencial para definir sua personalidade, um tanto quanto complexa e bagunçada. Nascera fruto do amor, mas desde tal acontecimento nunca mais o vira. Não a este sentimento. Vira outros, como a dor ou a saudade. Mas o amor não, este nunca mais lhe aparecera. E foi junto de um destes outros sentimentos, o que mais havia lhe acompanhado pela imensa estrada da vida, a raiva, que entrou naquele ônibus. 




O dia, cinza, lhe pregara uma peça. O carro, estragado. Os taxis, pareciam escapar-lhe aos olhos exprimidos. Então, balançando o braço, parou aquela caixa velha repleta de pessoas (ou seriam animais?). Entrou, olhou ao redor um tanto quanto enojado e disse em um tom de desdenho, mas, ainda assim, embaraçado:




- Moça... Por favor, q-quanto é a passagem?


- Dois e cinquenta.




Com a mão no bolso retirou algumas moedas, que tão logo se espalharam no chão. O desacostume fez com que ele não se agüentasse em uma freada, e acabou caindo e batendo com o quadril na catraca. Para qualquer um isso seria motivo para aumentar a raiva, ainda mais pra ele, um japonês-brasileiro-português. Mas não desta vez.



Aquela brecada havia lhe proporcionado um momento tão mágico que não havia como aumentar sua raiva. Os olhos que evitara desde que entrou na caixeta de transporte humano estavam agora na sua frente, quase que penetrados em sua alma.



Azuis, imensamente azuis. Pareciam o céu. Mas não o céu cinza daquele dia, e de todos os outros de sua vida. Azul como no dia que nascera. 

Os poucos segundos pareceram uma eternidade, mas rapidamente se recompôs, arrumou seu terno que encontrava-se desalinhado, retirou novas moedas como quem não precisa de dinehiro e atravessou a catraca. Sem dizer uma só palavra.



Sentou-se em cadeira única, afinal, jamais aceitaria dividir poltrona com um trabalhador qualquer.

 Porém, tomou o cuidado de escolhar uma bem perto da cobradora e seus tons de azul. Abriu sua maleta (preta,é claro), retirou um maço de papéis e pôs-se a lê-los. 

Ligeiramente distante estavam os olhos que um diz talvez lhe mostrasse novamente o sentimento perdido, pensou ele receoso, 

mas rapidamente espremeu estes pensamentos, deixando-os assim como seus olhos, e seguiu pelos minutos que o direcionavam ao ponto de chegada calado. Absurdamente sólido. Até que o ônibus parou, ele não se moveu, não sabia onde estava. O mar azul moveu seus lábios direcionando as palavras na sua direção. Ele tentou se soltar, mas permaneceu apático. A conversa rápida, a seu ver, teve um gosto de pedra. Foi grosso, respondeu pouco, disse pouco.

Evitou aqueles olhos por todo o tempo, temendo estar neles a resposta que ele temia. Já havia se acustumado a ser assim e não queria quebrar sua perfeição em um mar azul,

(e)

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Dois e cinquenta - Segunda parte

Todos os dias, Rebecca acordava meia hora mais cedo do que o necessário para pegar exatamente aquele ônibus. Ao chegar à escola, escolhia o lugar que lhe dava na telha e esperava meia hora até o momento de seus amigos chegarem. E seu namorado. Mas aquela meia hora era completamente compensada pela meia hora que ela passava dentro do ônibus, sentada, vagando pela cidade. A cidade em si, não lhe despertava o interesse. O que o despertava encontrava-se sentada lindamente atrás de uma catraca suja, em um banco mal almofadado, com um uniforme ridículo.

Os olhos da cobradora eram de um azul tão azul que Rebecca queria mais. Sentava-se com os velhinhos, na frente, até o ônibus esvaziar, assim, ela podia passar ali devagar e olhar; agradecer; um dia ou outro, dizer uma piada sobre o tempo. Observava os olhos dela com vontade, eram o céu. Intocável, incrível e inatingível céu.



Muitas pessoas passavam por ali. Sempre. Muitas. Diferentes, iguais. Eram tantas pessoas que nem saberia dizer mais se eram diferentes ou iguais. E isso porque a menina só estava ali em uma volta, nem inteira. Praticamente todos os homens que passavam olhavam para a mulher sentada, bem no meio do ônibus, como se já não bastasse a atenção que atraía naturalmente. Eles a olhavam muito. Ela era sempre muito simpática, sempre linda, sempre sorridente. Carregava livros de poesia, e nenhuma mulher linda com livros de poesia caberia no meio daquela sujeira. Exceto ela, que cabia. Como caber era um mistério, mas cabia. Todos os dias. Como se estar completamente deslocada a deixasse ainda mais interessante. Como se estar fora do lugar a colocasse no lugar certo.



A ruiva nunca pronunciou uma palavra para ninguém sobre a moça dos olhos de céu. Nunca. Ela não sentia nada, não era nada, não podia ser. Mas ela escondia, de tudo e de todos. E sentia coisas. Sentia coisas que escondia dela mesma, fingindo não sentir.



Ria-se com todos os moços interessantes que ela dispensava, sem nem saber. A cobradora nem notava o quanto eles a secavam, o quanto eles, nojentos, a comiam com os olhos. Nem notava, também, o quanto a menina a comia, nojenta, tanto mais.



Mas um belo dia de inverno, houve um homem que brotou ali, do nada. Deslocado: adjetivo que se encaixava. Naquele dia, em especial, a ida de ônibus não foi tão divertida. A mulher o observou com seus pequenos céus aprisionados na retina desde o momento em que ele entrou. E mesmo com as primeiras palavras que ele atirou nela, sem cuidado, sem pretensão, Rebecca soube. Dessas coisas de interesses inversos no amor, ela sabia bem.



- Dois e cinquenta.



Nunca ouvira palavras tão ácidas, o modo com que foram ditas foi tão especial, que ela só pode desejar que fossem suas, mas não eram. Sentiu-as descendo de atravessado pela garganta, com esforço, as engoliu. Aumentou no último o som do mp3 e desviou o olhar para a janela, para fora da janela, para algum lugar longe, longe, longe. Onde nem ela mesma poderia se encontrar. Afinal, não sentia coisa alguma. Ela tinha certeza que não sentia.



Naquele dia, o namorado de Rebecca estava especialmente carinhoso. Chegou dizendo Bequinha e a beijou, com amor. Ela, sem vontade, não o beijou muito, nem falou muito. Passou o dia sem falar muito. Ninguém nunca entendeu realmente o que foi que Gabs viu naquela estranha, excêntrica, geek, poser, tosca, vaca. As meninas que suspiravam quando Gabriel passava e anotavam o nome dele nas folhas do fichário com coraçõezinhos certamente usariam palavras bem piores do que estas para descrevê-la. Mas ela entendia, ham, sabia bem dessas coisas de interesses inversos.



Pelo menos um terço das meninas do colégio, sozinhas, no quarto, antes de dormir, pensavam em Gabs. Já Rebecca, 



(c)

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Dois e cinquenta - Primeira parte

cora não gostava de seu nome. achava-o curto, e nem um pouco poético. poderiam ter lhe dado isabela, e se transtornaria a cada soneto que visse a palavra bela. mas que se sua mãe insistisse em cora, que fosse coralina, para assim, ter de rimar com alucina. não sabia exatamente o que era alucina, mas a força das palavras lhe acertava em cheio, mais como brisa, e não propriamante como rocha, lógica e inquebrável.


mas apesar de achar feiura em seu nome, compensava em beleza sua aparência. ainda parecia muito menina, e dava-se a impressão que nunca as rugas pudessem ondular aquela pele lisa e alva que se alinhava sobre o molde da sua face. era branca, muito branca, e tinha os cabelos cortados até o ombro, e tinha olhos azuis, muito dos azuis, como o céu que passeava o dia todo pelas janelas que se debruçava, a sonhar. e era tanto céu azul que corria lá fora, enquanto trabalhava, sol a sol, que já nem ligava para o azul que enchia o mundo. odiava seu uniforme, que parecia que a deixava mais pequena do que já era, odiava o tintilar das moedas que as pessoas derrubavam ao passar pela catraca. porque, sim, cora, com seu semblante de menina aristocrática, era parte deste mundo desajustado, a parte mais imunda sobre rodas, sentada sobre seu trono sem mérito, era apenas uma cobradora.


seguia os passos do pai, motorista de outra linha, mas ainda suspirava pelos cantos quando sonhava que poderia muito bem dar a sua vida noutro lugar. enquanto isso, entre subidas e descidas, acostumadas com as curvas e as guinadas inesperadas, gostava de pensar nas palavras, de formar rimas, intercalá-las. começou esse gosto edruxulo, coisa de quem não tem mais o que fazer - dizia o pai, contrariado, desde menina, nas aulas de literatura. sentira tamanho júbilo quando comprou o cd de versos recitados de fernando pessoa, que era capaz de recitar vários. agora, levava na bolsa, pequena edição de vinícius de moraes, que a embedava com seus cânticos de amor e afloravam em sua alma, a oportunidade - temida - de sonhar.


por essas e outras, neste dia, que pensava enraivecida no nome que coroava sua pessoa, cora corada, cora rosada, cora florada, tirou-a de seus devaneios pessoa jamais vista por aqueles terrenos ambulantes. era alto, e parecia um tanto desengonçado, também pudera! vira a marca escancarada nos seus tênis, os fones de ouvido caídos na camiseta clara, o olhar perdido e um pouco repugnante. sabia! o tempo sentada ali lhe permitia avaliar cada tipo que passava por aquela catraca barulhenta, sabia! não sabia pegar ônibus, ah, não sabia. concentrou-se no rapaz, toda empertigada na cadeira, um pouco ansiosa sem saber porquê. tinha os olhos puxados, olhos orientais, enlameados, pretos e porosos! disseram-lhe uma vez que os orientais gostam de ouvir, sim, eram assim criados, e nós aqui, brasileiros estúpidos, queremos mais é falar. pensara, toda atrevida, o que me falta para dar cor nesta vida é bem um homem que me consiga escutar. em um segundo, já formulava histórias épicas inteiras, e o encanto só se desfez ao encontrar seus olhos com aquele olhar enviesado. sentiu-se sólida e toda gelada. todo o corpo dela estremeceu, como se tivesse levado uma pancada fria na nuca, que descera por toda as vértebras, uma a uma, transformando-a em um único bloco de gelo frio e mudo.


- moça... por favor, q-quanto é a passagem?


com dificuldade abriu a boca para fazer o som sair, mas até o som parecia congelado dentro da garganta,


(m)