quarta-feira, 3 de junho de 2009

Dois e cinquenta - Primeira parte

cora não gostava de seu nome. achava-o curto, e nem um pouco poético. poderiam ter lhe dado isabela, e se transtornaria a cada soneto que visse a palavra bela. mas que se sua mãe insistisse em cora, que fosse coralina, para assim, ter de rimar com alucina. não sabia exatamente o que era alucina, mas a força das palavras lhe acertava em cheio, mais como brisa, e não propriamante como rocha, lógica e inquebrável.


mas apesar de achar feiura em seu nome, compensava em beleza sua aparência. ainda parecia muito menina, e dava-se a impressão que nunca as rugas pudessem ondular aquela pele lisa e alva que se alinhava sobre o molde da sua face. era branca, muito branca, e tinha os cabelos cortados até o ombro, e tinha olhos azuis, muito dos azuis, como o céu que passeava o dia todo pelas janelas que se debruçava, a sonhar. e era tanto céu azul que corria lá fora, enquanto trabalhava, sol a sol, que já nem ligava para o azul que enchia o mundo. odiava seu uniforme, que parecia que a deixava mais pequena do que já era, odiava o tintilar das moedas que as pessoas derrubavam ao passar pela catraca. porque, sim, cora, com seu semblante de menina aristocrática, era parte deste mundo desajustado, a parte mais imunda sobre rodas, sentada sobre seu trono sem mérito, era apenas uma cobradora.


seguia os passos do pai, motorista de outra linha, mas ainda suspirava pelos cantos quando sonhava que poderia muito bem dar a sua vida noutro lugar. enquanto isso, entre subidas e descidas, acostumadas com as curvas e as guinadas inesperadas, gostava de pensar nas palavras, de formar rimas, intercalá-las. começou esse gosto edruxulo, coisa de quem não tem mais o que fazer - dizia o pai, contrariado, desde menina, nas aulas de literatura. sentira tamanho júbilo quando comprou o cd de versos recitados de fernando pessoa, que era capaz de recitar vários. agora, levava na bolsa, pequena edição de vinícius de moraes, que a embedava com seus cânticos de amor e afloravam em sua alma, a oportunidade - temida - de sonhar.


por essas e outras, neste dia, que pensava enraivecida no nome que coroava sua pessoa, cora corada, cora rosada, cora florada, tirou-a de seus devaneios pessoa jamais vista por aqueles terrenos ambulantes. era alto, e parecia um tanto desengonçado, também pudera! vira a marca escancarada nos seus tênis, os fones de ouvido caídos na camiseta clara, o olhar perdido e um pouco repugnante. sabia! o tempo sentada ali lhe permitia avaliar cada tipo que passava por aquela catraca barulhenta, sabia! não sabia pegar ônibus, ah, não sabia. concentrou-se no rapaz, toda empertigada na cadeira, um pouco ansiosa sem saber porquê. tinha os olhos puxados, olhos orientais, enlameados, pretos e porosos! disseram-lhe uma vez que os orientais gostam de ouvir, sim, eram assim criados, e nós aqui, brasileiros estúpidos, queremos mais é falar. pensara, toda atrevida, o que me falta para dar cor nesta vida é bem um homem que me consiga escutar. em um segundo, já formulava histórias épicas inteiras, e o encanto só se desfez ao encontrar seus olhos com aquele olhar enviesado. sentiu-se sólida e toda gelada. todo o corpo dela estremeceu, como se tivesse levado uma pancada fria na nuca, que descera por toda as vértebras, uma a uma, transformando-a em um único bloco de gelo frio e mudo.


- moça... por favor, q-quanto é a passagem?


com dificuldade abriu a boca para fazer o som sair, mas até o som parecia congelado dentro da garganta,


(m)

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