quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Dois e cinquenta - Décima quinta parte

Havia passado todo o fim de semana e agora, na segunda, Miguel voltava a trabalhar. Faltara na última sexta e por isso, mesmo às 6h da manhã e ainda com os pequeninos repletos de remela, estava sedento por fios vermelhos e uma certa íris azul. Se pudesse, naquela segunda cinza e garoada, daria para aquelas duas todos seus fluidos.

Ultimamente ele tem se imaginado 2,50. Elas, 2. Ele, 0,50. Metade, como sempre. Ele nunca fora inteiro mesmo. Passava então eternos segundos entrelaçado no lençol de sua cama, imaginado tais insanidades, até que seu “amigo” dava-lhe um “oi”, e ele corria até o banheiro para suas atividades de macho-alfa.

O dia estava raivoso. O cachorro de sua vizinha, Marieta, tentara-lhe rançar as calças com mordidas enfurecidas; o Chevet da verdura quase o atropelara e por pouco não perde o ônibus e seus dois reais.

Notou o esquecimento. Esqueceram de notá-lo. Ambas trocavam piscadelas e sorrisos enquanto ele, em pé, não conseguia entender nada. E quanto à ele? Não se incluía neste jogo de sedução? E quanto à Caeiro e Vinícius?

¹Quem vai pagar o enterro e as flores se eu morrer de amores?

Por quase toda a viagem seguiu quieto; mal podia-se ouvir sua respiração. Enquanto elas exalavam desejo, ele voltava a se entender japonêsbrasileiroportuguês. Nada inteiro. Decidira então agir. Levantou-se, foi até o azul e disse:

- Não quero in...in..incomodar! mas por Deus, como penso em você! Como nado e flutuo em seus olhos, menina! Prometo não importuná-la novamente, caso seja isso que queira, mas preciso do seu endereço - pronto, gozou. A fala às vezes dava-lhe tesão.

Assustada ela respondeu seca e ríspida. Tinha medo do que Rebecca pudesse pensar. Já Miguel, sorriu aliviado e partiu em direção à 3ª poltrona da fileira do corredor. Fogo.
- Preciso do seu endereço!
- Ãhn?
- Desculpe a intromissão, mas preciso. Não consigo mais viver nos sonhos do seu inferno, queimando no teu fogo.

Ela respondeu, sem demoras.
Ele desceu, mesmo fora de seu ponto, antes que um infarto engolisse seu coração, que agora mais parecia um sambódromo carioca em dia de carnaval. Mas algo alimentava sua curiosidade: por que elas deram o endereço assim, tão facilmente? Talvez ele ainda estivesse inserido no jogo.

Naquela tarde deixou em uma porta uma garrafa água viva, e na outra um isqueiro. Com convites. Convidadas. Passou a madrugada mergulhado em ansiedade, imaginação e corridas ao banheiro,

¹ Vinicius de Moraes

(e)

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Dois e cinquenta - Décima quarta parte

Para os pensamentos que se acomodavam abaixo do vermelho daqueles cabelos, andar de ônibus com a ausência dos olhos de Cora era similar a não haver mais céu. A noite começava a cair e o Sol, ao se pôr, deixava um rastro em meio aos prédios, no horizonte - um alaranjado quente, que enfeitava com perfeição o clima de verão da noite que surgia. Rebecca não sentia muito bem os pés, mantinha os negros olhos fixos ao céu através da janela, acalmando-se com a certeza de que ele não fugiria por uma fresta qualquer do Universo.



Os fones de ouvido auxiliavam no isolamento do mundo - não que fossem necessários, pois este partia de seu interior: do âmago das emoções que, ao arderem com tal intensidade, repeliam tudo o que fosse alheio ao sentimento. Ouvia as palavras do Radiohead com concentração fingida, até que uma frase interrompeu a falsidade de sua atenção:



"your skin makes me cry"



Riu-se. Que tolice! Voltou a mergulhar em seus pensamentos. Carregava entre os dedos um endereço rabiscado por uma caligrafia feminina. Deu o sinal, desceu, rotina.

Os postes na rua começavam a acender quando três ou quatro machos passaram por ela na caminhada, fedendo à sujeira, a trabalho, a excesso de masculinidade, as narinas abertas procurando algum sinal de cio ou de pinga. Arregalaram o cansaço dos olhos em Rebecca e declamaram (à la Bocage) toda a indelicadeza e imundice de seus desejos, na simplicidade operária de seu vocabulário. Ao contrário, porém, da comum repulsão que lhe causavam, neste momento, neste dia, houve algo no interior de seu estômago que se familiarizou com a impureza deles, que a uniu irracionalmente (mas com lógica compreensível) com o sexo sujo que o volume visível em suas calças rotas clamava. Como não bastasse o deturpado carinho, expressou-se em um modesto sorriso uma quase gratidão pelo desejo que lhe fora confiado, em forma de segredo. A blusa que a menina usava chamava atenção aos seios volumosos que Rebecca nunca dava valor, exceto hoje. Ela nunca tinha sido usada, mas o desconforto que essa novidade induzida trazia fora nitidamente enfraquecido pelo segredo que compartilharam. Compreenderam-se no silêncio e, como em respeito à verdade inconstestável que se impôs, os homens se calaram até desaparecerem na esquina.



Na placa azul escura em cima de sua cabeça, viu escrito o nome da rua, seguiu com o coração acelerado até ver os enferrujados números cravados à parede descascada de alva tinta velha. Ela sentia o êxtase da aproximação. Sentia o clímax de toda a sua vida, o impossível acontecendo bem entre as pernas quase cansadas, algo que ficava preso na garganta, que acelerava a respiração e que, principalmente, acontecia, fazendo-a tremer. Com os dedos trêmulos, apertou a campainha. Observou uma sombra andando de um lado para o outro pelo vão debaixo da porta antes de parar por alguns momentos e abri-la - no mínimo, ela não era a única que estava nervosa.


Os olhos azuis encontraram os negros e ambas deixaram escapar no rosto um sorriso bobo. A visão fez Rebecca ficar ainda mais febril. Antes de dizer qualquer coisa, as duas se permitiram, com ar de preciosidade, que se observassem. Sem moedas, sem uniformes, sem barulhos, sem orientais, sem quaisquer olhos julgadores. Cora usava saias e estava descalça. Os olhos, mais brilhantes do que nunca - era um céu cheio de nuvens, de sonhos, de esperanças, de desejos, de não-limitações, afinal, o céu é o limite. A blusa de alças deixava à mostra o sutiã vermelho e chamava atenção a esta região do corpo, a pele branca do colo desenhada pelos ossos. A saia era estampadíssima e terminava em uma renda delicada acima dos joelhos. Além disso, apenas uma tornozeleira cor de cobre amarrada no pé direito.



- Olá - disse Rebecca, encolhendo os ombros, um pouco absorta, ainda, em seus pensamentos profundos. Levou algum tempo até que ela conseguisse distinguir a realidade da imaginação e perceber que, desta vez, ao contrário de todas as outras horas do dia, a cobradora estava realmente ali, bem a sua frente, em carne, osso e em um turbilhão de sentimentos mistos.



Num impulso, Cora abriu um sorriso de dentes e abraçou a menina com força, que por pouco não enlouqueceu, sentindo tão inesperadamente aquelas tantas partes do corpo da mulher tocando o dela. Deslizou as mãos da cintura até as costas, tocando de leve os louros cabelos ao chegar perto do pescoço, sentindo, de olhos fechados, o cheiro bom de seu corpo limpo. Quando se desvencilharam do abraço, houve um breve momento de hesitação, em que seus rostos ficaram muito perto, pela primeira vez.



- Oi... Ai, eu tive tanto medo de que você não viesse... Vem cá, entra!



Os sorrisos nervosos exalavam as intimidades (já não tão) secretas de ambas. O ambiente tipicamente familiar era intimidante e agravava a sensação de pecado, erro, nojo, desejo. Uma contradição corrosiva que parecia aumentar a acidez do estômago. O corpo fervia, enquanto as mãos permaneciam geladas.



- Você quer comer alguma coisa? Tá com fome?

- Hm, não. - sentiu vontade de dizer que a ansiedade de estar com ela não a deixava sentir fome há dias, que seu estômago estava ocupado de emoções e o cérebro já não se importava com o próprio corpo, somente com o da mulher, mas nada disse.


- Ok. Vamos lá no meu quarto um pouco, depois a gente faz um brigadeiro, pode ser? Você gosta?

- Claro... Posso deixar a bolsa aqui?

- Sim, põe ai no sofá.



O quarto era uma cama de solteiro, um guarda-roupa velho de madeira, uma escrivaninha com alguns livros e um violão. Uma das quatro paredes, porém, era especial - nela haviam muitos pôsteres, bilhetes, frases rabiscadas e poesias. Rebecca parou por alguns instantes para observar, enquanto Cora se jogou na cama, abraçando o travesseiro e olhando para a menina com olhar de curiosidade.



- Isso é muito a sua cara. - a cobradora riu, enquanto os negros olhos se desviaram da parede para analisar o corpo deitado sobre a cama. - Eu adoro muito esse do Almeida Garret. - disse, apontando na parede - Os cinco sentidos.



Tirou os tênis e se sentou na cama junto à mulher. Entrelaçou os dedos no emaranhado de cabelos louros e se debruçou sobre ela, ao mesmo tempo que dizia:



- São belas - bem o sei, essas estrelas,

Mil cores divinais têm essas flores;

Mas eu não tenho, amor, olhos para elas:

Em toda a natureza

Não vejo outra beleza

Senão a ti - a ti!



Beijou-lhe o pescoço, sentindo com atenção todas as partes de seus corpos se tocarem. Cora acariciou seu rosto e, com a voz trêmula, continuou:



- Macia - deve a realva luzidia

Do leito - ser por certo em que me deito;

Mas quem, ao pé de ti, quem poderia

Sentir outras carícias

Tocar noutras delícias

Senão em ti - em ti!



Beijaram-se longamente, perdendo as mãos para dentro das blusas, a saia de Cora cada vez mais levantada. Os sons se perdendo ao ecoarem pelo quarto e fazendo toda a racionalidade de seus seres desaparecer, dando lugar apenas a um sentimento recíproco, que se confundia carnalmente com o amor, mas pouco importava pois nada havia, nenhum problema, senão o excesso de desejo amassado entre as duas. As roupas apenas atrapalhavam o tato e rapidamente foram descartadas.



Enquanto Rebecca sentia o gosto do corpo de Cora, ela apertava com força os lençóis, de olhos fechados e ofegante declamou, por fim:



- A ti! ai, a ti só os meus sentidos

Todos num confundidos,

Sentem, ouvem, respiram;

Em ti, por ti deliram.



Os cabelos vermelhos, que estavam numa bagunça incompreensível, se levantaram para encarar o par de olhos azuis. Com a respiração forte, as duas se olharam por um tempo incontável.



- Qual é o seu nome?


A cobradora riu e a beijou antes de responder ao pé do ouvido:


- Cora... Meu nome é Cora.



Rebecca escorregou as mãos pelas costas brancas de Cora. Cora... Fechou os olhos e enterrou todos os seus pensamentos e sentidos naquela pele lisa. Sorriu de leve, satisfeita, e por dentro algo incrível tomou conta de seu equilíbrio. Os olhos quase inundaram, contrapondo seu sorriso imenso, numa confusão de pele, mãos, dedos, pernas, braços, beijos, sons, sombras, céu, poesia e inferno. Soube, sem pensar duas vezes - Thom Yorke tinha razão,

(c)