domingo, 21 de junho de 2009

Dois e cinquenta - Sétima parte

cora, ao chegar em casa depois de um longo dia de reviravoltas em sua alma, queria apenas desmaiar. ainda assim, preparou o jantar e ouviu seu pai reclamar do parco salário que eles ganhavam. todos os dias ele reclamava, e dizia que não acreditava ter sua filha no mesmo patamar social que ele tentou fugir por toda sua vida. eles deveriam pensar em enriquecer, em mudar de vida, pois aquilo era uma desgraça.


- mas foi você que me arranjou o emprego. e foi aí que eu desisti de estudar.

- e eu sempre te disse que estudar não é o caminho certo, cora.


já não discutia. a sua contestação ficara perdida nas noites que passou chorando o futuro que haviam lhe desenhado. já não esperava nada, apenas esperava esperar suas paixões ultrapassarem catracas e adentrarem em seu mundo adornado. e suas paixões impulsionavam sua alma confusa e estrábica, um pouco torta e sem cor, mas sabia que tudo se explicava por todos os sorrisos, por todos os olhares. e aqueles olhares que estremeciam seu coração, acaloravam seu dia deixavam-na insana por dentro. e não era apenas aquele homem de olhos orientais, que muito a assustava, com toda sua pompa a destrambelhar pelo transporte público. era, também, aquela menina, que suscitava tais lembranças apimentadas, que queimavam sua garganta, enquanto a deliciavam. 
lavava calmamente a louça do jantar, brincava com a espuma pelos pratos sujos, lembrava-se das cócegas na sua pele. sentia a água gelada que desabrochava da pia, e a espirrava fazendo-se rir sozinha. que besteira, cora, você está se metendo em confusão. sim, estava, mas já não tinha tanta preocupação. queria percorrer caminhos nunca dantes vistos, escorregar por mundos que a fizessem sentir um pouco mais diferente. que a fizessem um pouco mais feliz, completa, irrigada. queria viver o que as linhas sonhadoras de seus poemas lhe sussurravam todos os dias, e já não achava erro ter direito à sentir isso. não era privilégio de ninguém, era apenas de quem se aventurasse. não sabia quem é que se encaixaria perfeitamente com sua alma cheia de vontades, mas não ligava. simplesmente lhe apetecia a idéia de ter entre os dedos cabelos vermelhos e dentro dos olhos outros mais puxados. era, sim, absurda, hiperbólica, colérica. queria tanto gritar, para afastar todos os pensamentos mesquinhos que insistiam em puxá-la para baixo e recuar pelos caminhos: ¹pouco me importa/ pouco me importa o que? não sei: pouco me importa.


fez silêncio para ver se dento de si mesma resurgiam as vozes desanimadas, como patos soluçando, mas parecia que tinham desistido. ouviu os roncos distantes do seu pai. caminhou na ponta do pé, pegou seu velho livro de alberto caeiro e sorriu.




no dia seguinte, quando viu aquele emaranhado vermelho-morto se aproximar, e tais olhos pretos que já a observam, disse-lhe na ponta da língua:


- ²mas, se acaso me descontentam,

o que quero é um sol mais sol que o Sol,

o que quero é prados mais prados que estes prados,

o que quero é flores mais estas flores que estas flores. pode passar.


cora decidira-se por viver, pois sonhar não cabia mais na sua alma, que tinha se tornado grande, tão grande que nem ela imaginava,






¹ pouco me importa - alberto caeiro.
² ah! querem uma luz - alberto caeiro

(m)

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