sábado, 6 de junho de 2009

Dois e cinquenta - Terceira parte

Apesar de pequenos e exprimidos, os olhos de Miguel sabiam expressar bem sua crise existencial. Como pode um brasileiro, de olhos exprimidos japoneses e nome português? Bom, mas isto talvez fosse essencial para definir sua personalidade, um tanto quanto complexa e bagunçada. Nascera fruto do amor, mas desde tal acontecimento nunca mais o vira. Não a este sentimento. Vira outros, como a dor ou a saudade. Mas o amor não, este nunca mais lhe aparecera. E foi junto de um destes outros sentimentos, o que mais havia lhe acompanhado pela imensa estrada da vida, a raiva, que entrou naquele ônibus. 




O dia, cinza, lhe pregara uma peça. O carro, estragado. Os taxis, pareciam escapar-lhe aos olhos exprimidos. Então, balançando o braço, parou aquela caixa velha repleta de pessoas (ou seriam animais?). Entrou, olhou ao redor um tanto quanto enojado e disse em um tom de desdenho, mas, ainda assim, embaraçado:




- Moça... Por favor, q-quanto é a passagem?


- Dois e cinquenta.




Com a mão no bolso retirou algumas moedas, que tão logo se espalharam no chão. O desacostume fez com que ele não se agüentasse em uma freada, e acabou caindo e batendo com o quadril na catraca. Para qualquer um isso seria motivo para aumentar a raiva, ainda mais pra ele, um japonês-brasileiro-português. Mas não desta vez.



Aquela brecada havia lhe proporcionado um momento tão mágico que não havia como aumentar sua raiva. Os olhos que evitara desde que entrou na caixeta de transporte humano estavam agora na sua frente, quase que penetrados em sua alma.



Azuis, imensamente azuis. Pareciam o céu. Mas não o céu cinza daquele dia, e de todos os outros de sua vida. Azul como no dia que nascera. 

Os poucos segundos pareceram uma eternidade, mas rapidamente se recompôs, arrumou seu terno que encontrava-se desalinhado, retirou novas moedas como quem não precisa de dinehiro e atravessou a catraca. Sem dizer uma só palavra.



Sentou-se em cadeira única, afinal, jamais aceitaria dividir poltrona com um trabalhador qualquer.

 Porém, tomou o cuidado de escolhar uma bem perto da cobradora e seus tons de azul. Abriu sua maleta (preta,é claro), retirou um maço de papéis e pôs-se a lê-los. 

Ligeiramente distante estavam os olhos que um diz talvez lhe mostrasse novamente o sentimento perdido, pensou ele receoso, 

mas rapidamente espremeu estes pensamentos, deixando-os assim como seus olhos, e seguiu pelos minutos que o direcionavam ao ponto de chegada calado. Absurdamente sólido. Até que o ônibus parou, ele não se moveu, não sabia onde estava. O mar azul moveu seus lábios direcionando as palavras na sua direção. Ele tentou se soltar, mas permaneceu apático. A conversa rápida, a seu ver, teve um gosto de pedra. Foi grosso, respondeu pouco, disse pouco.

Evitou aqueles olhos por todo o tempo, temendo estar neles a resposta que ele temia. Já havia se acustumado a ser assim e não queria quebrar sua perfeição em um mar azul,

(e)

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