quinta-feira, 4 de junho de 2009

Dois e cinquenta - Segunda parte

Todos os dias, Rebecca acordava meia hora mais cedo do que o necessário para pegar exatamente aquele ônibus. Ao chegar à escola, escolhia o lugar que lhe dava na telha e esperava meia hora até o momento de seus amigos chegarem. E seu namorado. Mas aquela meia hora era completamente compensada pela meia hora que ela passava dentro do ônibus, sentada, vagando pela cidade. A cidade em si, não lhe despertava o interesse. O que o despertava encontrava-se sentada lindamente atrás de uma catraca suja, em um banco mal almofadado, com um uniforme ridículo.

Os olhos da cobradora eram de um azul tão azul que Rebecca queria mais. Sentava-se com os velhinhos, na frente, até o ônibus esvaziar, assim, ela podia passar ali devagar e olhar; agradecer; um dia ou outro, dizer uma piada sobre o tempo. Observava os olhos dela com vontade, eram o céu. Intocável, incrível e inatingível céu.



Muitas pessoas passavam por ali. Sempre. Muitas. Diferentes, iguais. Eram tantas pessoas que nem saberia dizer mais se eram diferentes ou iguais. E isso porque a menina só estava ali em uma volta, nem inteira. Praticamente todos os homens que passavam olhavam para a mulher sentada, bem no meio do ônibus, como se já não bastasse a atenção que atraía naturalmente. Eles a olhavam muito. Ela era sempre muito simpática, sempre linda, sempre sorridente. Carregava livros de poesia, e nenhuma mulher linda com livros de poesia caberia no meio daquela sujeira. Exceto ela, que cabia. Como caber era um mistério, mas cabia. Todos os dias. Como se estar completamente deslocada a deixasse ainda mais interessante. Como se estar fora do lugar a colocasse no lugar certo.



A ruiva nunca pronunciou uma palavra para ninguém sobre a moça dos olhos de céu. Nunca. Ela não sentia nada, não era nada, não podia ser. Mas ela escondia, de tudo e de todos. E sentia coisas. Sentia coisas que escondia dela mesma, fingindo não sentir.



Ria-se com todos os moços interessantes que ela dispensava, sem nem saber. A cobradora nem notava o quanto eles a secavam, o quanto eles, nojentos, a comiam com os olhos. Nem notava, também, o quanto a menina a comia, nojenta, tanto mais.



Mas um belo dia de inverno, houve um homem que brotou ali, do nada. Deslocado: adjetivo que se encaixava. Naquele dia, em especial, a ida de ônibus não foi tão divertida. A mulher o observou com seus pequenos céus aprisionados na retina desde o momento em que ele entrou. E mesmo com as primeiras palavras que ele atirou nela, sem cuidado, sem pretensão, Rebecca soube. Dessas coisas de interesses inversos no amor, ela sabia bem.



- Dois e cinquenta.



Nunca ouvira palavras tão ácidas, o modo com que foram ditas foi tão especial, que ela só pode desejar que fossem suas, mas não eram. Sentiu-as descendo de atravessado pela garganta, com esforço, as engoliu. Aumentou no último o som do mp3 e desviou o olhar para a janela, para fora da janela, para algum lugar longe, longe, longe. Onde nem ela mesma poderia se encontrar. Afinal, não sentia coisa alguma. Ela tinha certeza que não sentia.



Naquele dia, o namorado de Rebecca estava especialmente carinhoso. Chegou dizendo Bequinha e a beijou, com amor. Ela, sem vontade, não o beijou muito, nem falou muito. Passou o dia sem falar muito. Ninguém nunca entendeu realmente o que foi que Gabs viu naquela estranha, excêntrica, geek, poser, tosca, vaca. As meninas que suspiravam quando Gabriel passava e anotavam o nome dele nas folhas do fichário com coraçõezinhos certamente usariam palavras bem piores do que estas para descrevê-la. Mas ela entendia, ham, sabia bem dessas coisas de interesses inversos.



Pelo menos um terço das meninas do colégio, sozinhas, no quarto, antes de dormir, pensavam em Gabs. Já Rebecca, 



(c)

Um comentário:

  1. "Já Rebecca," eu adorei isso.Adorei a virgula.
    Apesar de o primeiro também ser terminado assim eu não reparei. Nào por acaso, mas não reparei.

    Mas vá lá, ela é meio estrainha, reprimidíssima e uma incognita quanto a aparencia fisica pra mim. Espero conhecê-la mais pra frente. :]

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